quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

EIDOS INFO - ZINE # 28



"A violência as vezes é necessária, mas a meus olhos não há grandeza senão na doçura" Simone Weil
  

A volta a Deus: Réplica a Dorothy Thompson: Rudolf Rocker/Teatro operário em São Paulo (1902-1930): Cultura e Sociedade em Cenas Anarquistas.( elementos teóricos para uma discussão conceitual): Munis  Pedro Alves/O (des)encontro do Brasil consigo mesmo: ditos e escritos de Edgard Leuenroth. [Parte II]: Christina Roquette Lopreato/O Teatro do Bem e do Mal e a “Crise” na Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro: FARJ/O mundo árabe está em chamas:Mazen Kamalmaz


EDITORIAL


Caros Amigos,

Depois de alguns meses sem ser publicado, o Eidos está de volta. Em virtude de outros afazares, a nossa revista de cultura política libertária teve que ficar um pouco de lado.Mas, chega de tantas desculpas! Esta ai o Eidos 28! Esperamos que apreciem a leitura!

Abraços libertários.


CONTATOS


Fernanda Caroline de Melo Rodrigues: fernandaanarquista@yahoo.com.br
Thiago Lemos Silva: thiagobakunin@yahoo.com.br

ARTIGOS


A volta a Deus: Réplica a Dorothy Thompson*

MISS DOROTHY THOMPSON é uma mulher extraordinária. Alguns de seus adversários não o querem reconhecer. Pior para eles, não para Miss Thompson. A pessoa que serve a uma grande causa, respeita aos inimigos, porque respeita a si mesma. Refiro-me aos adversários honestos, pois só eles merecem esses nomes. Miss Thompson é uma mulher valorosa, uma pessoa que pensa e que sente, da escola do velho liberalismo norte-americano, que teve seus melhores representantes em Paine, em Jefferson, em Thoreau, em Emerson e em muitos outros. Miss Thompson não é daqueles “liberais” que tornaram seu o pensamento de que as interpretações políticas e sociais de Jefferson e de seus partidários não são aplicáveis à época atual, porque as condições materiais da vida se modificaram e adquiriram formas que não poderiam prever os liberais da velha escola.
Miss Thompson compreende que o pensamento da liberdade humana não está ligado a nenhuma época e a nenhuma condição material; que constitui o mais profundo conteúdo de nossa vida, do qual emana toda cultura, todo progresso na história. O ambiente material em que vivemos se modifica sem cessar e nos impõe novos ensaios e métodos, mas o espírito de liberdade é imutável, pois encarna o valor da personalidade, a dignidade do ser humano, sem o qual a vida perde o conteúdo.
Dorothy Thompson é, neste aspecto, mais revolucionária que muitos de nossos radicais que, assustados com as terríveis experiências do fascismo vermelho e pardo, se aferram à ordem atual de coisas e perderam toda capacidade para contemplar novas perspectivas para o futuro. O maior mérito de homens como Paine e Jefferson esteve em terem reconhecido que todo período tem seus problemas especiais, e que nenhuma geração tem o direito de prescrever o modo de viver às gerações futuras. Nada existe para a eternidade. O câmbio contínuo das coisas é a grande lei da vida. A fatalidade de toda reação política e social foi sempre que seus promotores inventaram ligar os homens a uma condição existente e quiseram impedir todo desenvolvimento ulterior.
Miss Thompson o assinala. Por isso busca a salvação, não no passado, mas no desenvolvimento de um novo espírito que brote da necessidade de liberdade do ser humano e adapte as condições materiais da vida a essa necessidade. Compreendeu os perigos do monopolismo político e econômico e a grande exigência de uma transformação de todos os valores espirituais e materiais. Assinala também que, na grande luta contra a barbárie do Estado totalitário, só pode triunfar a liberdade se esta forjar suas próprias armas e não tomá-las do arsenal da tirania. Por isso soa tanto mais singularmente sua afirmação “de que nosso terrível período deve ser atribuído ao fato de ter excluído da vida humana o conceito de Deus e ter criado, em sua substituição, um vazio espiritual que procuram encher hoje um Hitler, ou um Stalin”.
Não pertenço aos que se assustam com a palavra Deus. Se chamamos à grande razão primária de todas as coisas, Deus ou Natureza, nem por isso nos aproximamos mais dela. Nosso pensamento move-se sempre na superfície dos conceitos criados por nós mesmos. Podemos interpretar o mundo e a vida diversamente, mas nem por isso descerramos o véu atrás do qual está oculto o grande mistério. Nem a religião nem a ciência podem informar-nos sobre este ponto. As concepções materialistas e teístas se sucedem em cada período da história; parece até que ambas têm sido solidárias. Por sua aparição alternativa criam uma certa nivelação de nosso pensamento. É como uma vara que se curvou para um lado e que é preciso ser curvada para o outro para ficar direita. Mas é falso, é perigoso e injusto querer carregar a responsabilidade de determinados fenômenos sociais a um certo modo de pensar. Sem dúvida, um déspota pode aproveitar certas idéias para seus fins, mas com isso não fica provado que uma idéia em si e por si seja despótica. Talvez os piores crimes se perpetram em nome de Deus.
Se se pudesse demonstrar que os períodos de credulidade religiosa estiveram livres de guerra, de ódio e de perseguição, não necessitaríamos disputar acerca deste problema. Mas justamente as guerras religiosas foram até aqui as mais cruéis de todas as guerras, e não existiu um déspota que não tenha justificado sua tirania em nome de Deus. As cruzadas, as guerras contra os albigenses, bogomilos e hussitas, a guerra dos Trinta Anos e as guerras dos huguenotes na França são eloqüentes testemunhos.
Hitler é, sem dúvida, um homem religioso que acredita firmemente que é um instrumento de Deus na terra. Essa idéia fanática reaparece em todos os seus discursos. Mas seu ex-amigo Stalin pensava com Marx que a “religião é o ópio do povo”. Ambos têm concepções totalmente distintas sobre a religião e chegaram, contudo, ao mesmo despotismo. Não prova isso que o verdadeiro problema é mais profundo? Torquemada que mandava queimar os corpos para salvar as almas, era um representante manifesto do absolutismo político e religioso. Maquiavello e Hobbes, ao contrário, não acreditam nem em Deus nem no diabo e eram, contudo adeptos do absolutismo estatal.
Acusou-se a Darwin de ser a sua teoria da luta pela existência responsável pelo egoísmo social de nosso tempo. Mas foi esquecido que, segundo sua própria confissão, precisamente essa parte de sua teoria foi influída fortemente pelas doutrinas malthusianas. Malthus, que sustentava que “a mesa da vida não está servida para todos”, não só era um homem profundamente religioso, como também era sacerdote. E Kropotkin, declaradamente “materialista”, que não acreditava em nenhum Deus pessoal, desenvolveu das conclusões de Darwin a filosofia do apoio mútuo, nascida do mais profundo amor humano.
Não sustento que um ser religioso não possa ser uma boa pessoa. Um homem pode crer em Deus e pertencer às criaturas mais nobres da terra. Mas o mesmo pode também ocorrer com homens que não acreditam em nenhuma divindade pessoal e estão firmemente convencidos de que o ser humano venera em Deus somente seu próprio retrato. Kropotkin, Reclus, Owen, Malatesta e cem outros pertenciam, apesar de sua “incredulidade”, aos representantes socialmente mais sensíveis da espécie humana. Não é o sinal externo ou a necessidade pessoal de fé que formam os seres humanos reais, mas a conduta ante seus semelhantes, seu respeito ante a liberdade dos outros, sua compaixão ante a dor do próximo, sua profunda necessidade de justiça para todos. A religião é, em geral, um conceito muito indefinido. A palavra latina religio significa a ligação dos homens a algo superior. Neste sentido todo ser de disposição idealista é um religioso. O homem pode chamar divino ao supremo que aspira. Sobre as palavras não vale a pena discutir. Mas o Deus que cria por si mesmo tem sempre que permanecer seu próprio Deus. No momento em que o impõe aos outros, converte-se em cilício do próximo. Isto se aplica a Deus, a toda “verdade absoluta”, a toda idéia. Pois para todos nós tem validade a frase de Goethe:“Assim como és, é teu Deus. Por isso se converte muitas vezes a divindade em escárnio”.
Não são as idéias, quer lhes atribuamos uma origem divina ou uma origem humana, que causam a nossa infelicidade, mas a falta de idéias, a petrificação paulatina das concepções viventes em dogmas mortos que asfixiam o espírito e fazem perder a capacidade para a ação. Idéias que influem em nosso desenvolvimento espiritual, surgem sempre das circunstâncias da época e de certas necessidades da vida como o fruto da flor na árvore. As idéias não se movem no ar; brotam das condições do ambiente material circundante em que vivemos e reacionam sobre ele, ajudando-nos a modificá-lo. Surgem novas idéias sempre que o tempo amadurece para elas. Unimo-las freqüentemente ao nome de alguns indivíduos e esquecemos muito freqüentemente sua formação gradual, antes de adquirir uma forma determinada através da energia intelectual de um homem de gênio.
A idéia da evolução não foi inventada por Darwin. Teve uma grande quantidade de precursores em todos os povos de nosso círculo cultural, entre eles Diderot, Treviranus, Lametrie, Buffon, Goethe, Lamarck, etc., antes que Darwin e Wallace resumissem as experiências de seus predecessores e as próprias. O chamado marxismo, que não só teve influência sobre o movimento socialista, mas também sobre o pensamento econômico e histórico de um determinado período, não nasceu em todas as suas partes integrantes do cérebro de Marx. Encontramos os fundamentos da “interpretação materialista da história”, da “teoria da plus-valia”, da doutrina da “concentração do capital”, etc., nos escritos de Saint-Simon, Bazard, Considérant, Vidal, Pecquer, Louis Blanc, William Thompson, Proudhon e muitos outros. O mérito de Marx consiste em ter resumido os rudimentos de seus predecessores de maneira coesa e fecundá-los com os próprios. Mas o fato de tê-los formulado como lei absoluta, determinante de todo o desenvolvimento da humanidade, foi sua fatalidade, pois criou com essa fé no absoluto um dogma que, em mãos de seus adeptos, impediu todo o desenvolvimento ulterior.
As idéias são sempre boas, enquanto o espírito vive nelas e estimula os homens a pensar por sua própria conta. Perdem sua fecundidade natural quando degeneram em dogma morto e cessam realmente assim de ser idéias. Pelo fato de Hitler e Stalin terem querido suplantar a Deus, como afirma Miss Thompson, não chegaram a ser açoites da humanidade mas homens sem idéias que intentam impor ao mundo um dogma morto, o dogma do Estado totalitário, e querem obrigar os homens, com cego fanatismo e violência brutal, a reconhecer sua loucura. A crença no absoluto é o maior obstáculo para todo desenvolvimento espiritual.
Lessing, o grande sábio, disse uma vez: “Se Deus viesse a mim, com a verdade absoluta numa das mãos e a aspiração à verdade na outra, e me dissesse: ‘Escolhe meu filho’, eu lhe responderia: ‘A verdade absoluta, Senhor, conserva-a para ti, pois todo o absoluto está feito para os deuses. A mim, dá-me a eterna aspiração à verdade, pois nela está a dignidade humana’”. Nestas palavras está contido todo o programa do homem que pensa e luta em todos os tempos e países. Não há perfeição absoluta; há uma aspiração à verdade. Nem a religião nem a ciência nem a filosofia podem dar-nos a verdade absoluta, mas apenas esclarecimentos que hoje são exatos e amanhã são relegados por novas interpretações. É o espírito somente o que gera sempre nova mutação e dá à nossa existência finalidade e conteúdo. Mas o espírito só opera em liberdade; por isso odeia o absoluto e compreende que as coisas não possuem mais que um valor relativo.
Também Dorothy Thompson compreende isso. Por isso fala de um novo espírito que há de chegar aos seres humanos para criar os rudimentos de um novo mundo depois do dilúvio vermelho. Compara a atual catástrofe com a decadência de Roma e prevê o “derrubamento de instituições, valores, classes, sistemas econômicos e políticos”. Mas essa perspectiva não a torna pessimista: olha, ao contrário, com maior esperança para o futuro. Isto é alentador nesta época tenebrosa. Tem razão quando diz: “A terrível e dramática contradição de nosso tempo é que existe nele muito mal e outro tanto bem; é a época da desesperação, mas também a época da esperança”. Palavras formosas e nobres, ante as quais podem tonificar-se as almas cansadas que perderam a fé num melhor porvir.
Mas o espírito que há de vir para nós, não será o do passado, mas o do futuro. Um ancião pode pensar em sua juventude com muda nostalgia, mas não volverá a ela. Como viveu sua própria vida, assim tem de morrer sua própria morte. Depois da grande catástrofe das guerras napoleônicas, peregrinaram centenas, milhares de jovens artistas, filósofos e antigos revolucionários a Roma para voltar ao seio da Igreja. O que encontraram ali não foi o Deus que buscavam, mas a “Santa Aliança” da reação social, o domínio de Metternich, que substituiu Napoleão e fez da Europa um cemitério intelectual. Somente as revoluções de 1848-1849 suprimiram esse obstáculo e deram aos povos novas esperanças.
Inclusive a idéia mais fecunda pode terminar em dogma morto, não somente na religião, mas também na ciência, na filosofia, em todo o domínio da vida espiritual. Só o espírito livre libera, o dogma escraviza. O espírito suspende sua obra, começa a escravidão voluntária, incapaz de toda sublevação. O dogmático forja as próprias cadeias e alivia o trabalho dos tiranos. Adapta-se às coisas dadas e renuncia à aspiração da verdade; esquece sua dignidade humana. O mundo pende dele como uma pedra ao colo, pois sente-se uma parte do eterno movimento de todas as coisas, que não reconhece um ponto morto. Dorothy Thompson tem razão quando fala de um novo espírito para dar à nossa vida novos valores espirituais e materiais e penetra todas as nossas aspirações com o anelo de uma grande sensibilidade ética. Importa pouco o nome que se lhe dê, enquanto se compreenda que ser homem é ser combatente ardoroso.
Só cria novos valores o que não se extravia no labirinto de conceitos do passado e vê na liberdade o único valor da vida. Mas o novo de que necessitamos está à nossa frente, e não atrás. Do Oriente sai o sol, no Ocidente se põe.


Rudolf Rocker (1873- 1958), anarquista alemão.


Notas:


*Excerto de ROCKER, Rudolf. As idéias absolutistas no socialismo. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/rocker.html.





Teatro operário em São Paulo (1902-1930): Cultura e Sociedade em Cenas Anarquistas.( elementos teóricos para uma discussão conceitual)

      A imigração para o Brasil representou mudanças culturais acentuadas na Primeira República. Esse fluxo migratório saía de seus países em busca de trabalho e melhores condições de vida, porém não era bem isto que encontravam cá. Segundo Petrone[1], cerca de 33% destes imigrantes eram italianos, e grande parte destes dirigiam-se para São Paulo, o estado considerado o maior receptor de imigrantes, que chegavam atraídos, em boa parte, pela expansão da economia cafeeira e pela política publicitária do governo no incentivo a imigração estrangeira (concessão de passagens, alojamento e outras propagandas).
Sobretudo, com o desenvolvimento das indústrias foi possível a absorção de grande parte destes trabalhadores na zona urbana, uma vez que a constituição da burguesia brasileira se caracterizou por um elevado entrosamento entre famílias de cafeicultores e de empresários-imigrantes, principalmente por meio de casamentos, segundo Sônia Mendonça[2]. Entretanto, as condições de trabalho do operariado na Primeira República eram bastante desfavoráveis, alguns chegavam a trabalhar 15 horas por dia, de segunda a sábado, às vezes, forçados a trabalharem no domingo também, quando demitidos não tinham direito a indenização, tampouco a aviso prévio.
Os donos das industrias não tinham o mínimo cuidado para com a higiene e saúde do trabalhador no interior dos locais de serviço, o que propiciava uma série de doenças e acidentes de trabalho, onde as principais vítimas eram crianças operárias.




Os trabalhadores menores, de 7 a 14 anos, eram as principais vítimas dos mestres e contra-mestres, que os castigavam com espancamentos, sopapos, pontapés e puxões de orelha (…) Os mestres e contra-mestres também seduziam mulheres operárias em troca de máquinas mais produtivas ou de melhores salários. Caso não cedessem a essas propostas, elas eram perseguidas com multas, descontos ou máquinas enguiçadas.[3]



          Os inúmeros acidentes, os baixos salários, as longas jornadas e o excesso de autoritarismo provocavam protestos, em diversas formas possíveis, e reivindicações dos operários. Dentre estas formas de protestos, um importante pensamento ideológico ganhou voz: o anarquismo. Vários foram os meios para divulgarem este ideal, dentre os quais nos detivemos em um modo de expressão que vai englobar outro conjunto cultural mais amplo, o teatro operário.
O teatro operário ou social foi um evento fortemente presente na cultura dos trabalhadores brasileiros, principalmente imigrantes, a partir do final do século XIX. Assim, Vera Collaço nos conta do surgimento de um teatro amador realizado por trabalhadores em 1897 no Rio Grande do Sul. Segundo a historiadora este teatro realizado na cidade de Rio Grande (RS) foi sempre de caráter moralizador, pedagógico e possuía um discurso ideológico de apelo às massas, tendo fortes influências anarquistas e socialistas em seus primórdios, mas transformando-se em conservador ao passar dos anos.[4]
Posto que este teatro organizado inicialmente por trabalhadores do Rio Grande de Sul perdurou até a década de 50, podemos ver como o período de divulgação de ideias e conscientização dos trabalhadores se estendeu ao longo do século, sob tais configurações de mensagens políticas e ideológicas também se organizou um teatro operário de importante expoente sindical brasileiro, na região de São Bernardo do Campo entre as décadas de 70 e 80 do século XX. A historiadora Kátia Paranhos nos conta sobre intenções de educação sindical como estratégia de luta por melhores condições de trabalho, dirigentes sindicais se misturavam-se a trabalhadores e a um ator e diretor profissional teatral, na promoção deste evento.[5]
De acordo com Gabriel Passetti, o teatro operário em São Paulo era realizado geralmente no Bairro do Brás, onde morava grande parte dos imigrantes, e situava uma parcela das pequenas indústrias de imigrantes italianos[6].
É imprescindível, portanto, discutir a importante contribuição que Maria Thereza Vargas deu ao assunto em sua obra, Teatro Operário na cidade de São Paulo, de 1980. Pretendemos mais do que reconhecer o trabalho da autora, também utilizá-la como obra principal para o norteamento do artigo, uma vez que é escassa a quantidade de discussão e fontes para o tema.
Maria Thereza remonta fragmentos de jornais anarquistas, notícias, anúncios, balancetes financeiros e trechos das peças divulgados, para demonstrar evidências de um teatro operário, concomitantemente a publicação das primeiras edições de jornais ideologicamente libertários. Contudo, ela supõe que os teatros operários surgiram pouco após a chegada de imigrantes europeus, principalmente italianos, ao Brasil. E que, portanto, antes da atividade gráfica, já havia o encontro teatral operário mesmo que silenciado até a criação da imprensa operária.
O teatro era extensão de organismos de proteção e ajuda mútua voltados para os trabalhadores recém chegados ao Brasil,  e tinham intenções didáticas de preparação destes imigrantes às condições de vida do operariado brasileiro.




A origem desta concepção didática doutrinária do teatro está ligada certamente a composição étnica da classe operaria. São os italianos, como parcela numericamente mais significativa da composição da classe nesse início de industrialização, que assumem e impõem continuidade à atividade teatral. O teatro é aqui o surgimento de uma experiência anterior, em solo italiano, largamente desenvolvida durante às lutas sociais do período de unificação. De forma muito particular, a divulgação das teorias sociais libertárias se processa idealmente através da arte. [7]



           Luigi Molinari valida a capacidade de instrução para as massas que o teatro possui. E um teórico anarquista, Hebert Read, explicita o veículo da arte enquanto projetista de uma sociedade ideal que coadunaria harmonia coletiva e liberdade individual, surgindo como expressão cotidiana capaz de transformação social através da prática política.
Adiante, verificando os lugares onde eram realizados os teatros, vemos que a busca resulta em locais alugados geralmente utilizados para conferências e números musicais, funcionando mais precisamente como auditórios do que propriamente em peças de teatro.




Antes de mais nada, interessa a esse teatro a clareza na transmissão de uma ideia já formulada no discurso verbal. E é sobre a palavra que se apoia o espetáculo, ignorando o poder de sedução da imagem. Operando sobre a consciência do espectador, o teatro deve comover através da identificação de problemas. [8]



           O apelo ao teatro era realizado oralmente nas fábricas convidando toda a classe operária e muitas vezes também através da imprensa operária. A apresentação do teatro era apenas uma das atividades desenvolvidas durante a Festa Operária que acontecia geralmente no sábado a noite, até a madrugada de domingo; com incursões de rifas, cantos, conferências, outras atividades artísticas e no encerramento o baile, que podia durar várias horas. Entretanto, havia diversos atritos com ideólogos e/ou grupos teatrais “mais engajados politicamente”, que não viam com bons olhos as realizações de bailes, dizendo por vezes que estes eram um desperdício de energia, que poderia ser melhor empregada em ações políticas e ideológicas. Nota-se a luta de classes evidente, entre o discurso dos dirigentes operários, que organizavam as apresentações e a cultura dominante, acentuados pela tensão separatismo/assimilação, uma vez que no intento da invenção de uma sociedade sem-governo fundada sob a ordem anarquista os parâmetros culturais se confundiam com os da cultura dominante. Mais do que isso, existe a contradição entre o discurso da direção da classe e próprio discurso da classe[9], como chama a nossa atenção Hardman.
Outro ponto colocado por Maria Thereza é a destinação que os fundos gerados pelas festas eram utilizados. “Com frequência maior destina-se a renda aos periódicos libertários. Mas há também ‘benefícios’ em nome de companheiros doentes, presos ou exilados”[10] Por vezes esta renda do sábado festivo era destinado também a construção de escolas para filhos de operários, conhecidas como Escolas Modernas, além de sustentarem ajuda a grupos internacionais anarquistas.
Para dar voz ao documento no relato sobre a presença de mulheres e crianças, cabe aqui ressaltar a participação ativa da família operária nestes eventos culturais, como mostra Maria Thereza:




É comum que a programação de uma festa se modifique durante o espetáculo, incluindo um ou outro número musical e poético por solicitação da platéia. Qualquer pessoa pode ter acesso ao palco e contribuir com o número que desejar. Da mesma forma que a propaganda doutrinária se dirige à família operária, o teatro é feito e freqüentado por todos os membros da família operária.[11]



           Edgar Rodrigues, outro importante pesquisador do anarquismo no Brasil, não produz uma obra especificamente tão detalhada sobre nosso objeto de estudo quanto Maria Thereza Vargas, entretanto dedica um capítulo especial, relativamente curto, de sua renomada obra Nacionalismo e Cultura Social , ao Teatro Operário.
O autor data o início do Teatro Operário em 1903 e salienta que compostos por modestos trabalhadores, grevistas, anarquistas, perseguidos políticos, passavam por vezes alguns deles, evolutivamente de atores amadores no início do século à condição de profissionais mais tardiamente. Explica, além disso, que o sucesso de algumas peças era tão grande que estas foram repetidas por diversas apresentações.
Edgar caracteriza o teatro como um meio difusor de idéias libertárias, que evidenciavam simbolicamente em seus personagens: os que desejavam segurar a riqueza da nação e o poder nas mãos de poucos em prejuízo de muitos, e dos que desejavam transformar a nação numa sociedade de homens livres e iguais em deveres e direitos”. [12]
Todo o caráter de transformação social iniciada nas estruturas mentais dos espectadores e de solidariedade mútua promovida pelo teatro operário é abordado através do pensamento do autor.




O teatro social, cultivado pelo proletariado, alcançou grandes objetivos. Foi o mais poderoso veículo para instruir, educar, formar mentalidades humanistas, angariar fundos que sustentavam famílias de presos, de deportados, que socorreu doentes, desempregados, enfim, foi meio eficaz com efeito simultâneos, incluindo-se o da solidariedade social.[13]



          Longe da proposta, a priori, de esmiuçar longamente ou promover um debate acirrado sobre os preceitos ideológicos e vertentes autorais que envolvem o objeto de estudo, o presente exercício intelectual, se propõe humildemente em trazer um pouco de “caos” às interpretações historiográficas escassas sobre o tema Teatro Operário relacionado a uma cultura “anarquista”.
Posto que o material é desconhecido por gigantesca maioria acadêmica, ainda maior fora dos muros que cercam a erudição e sapiência, então que a primeira intenção, quiçá principal, seja de levar este material documental de grande valor e significado, para um importante grupo presente e atuante nos primórdios do republicanos brasileiros, e que tanto tem relação com nossos dias atuais.
A primeira e significativa dificuldade na pesquisa sobre o Teatro Operário é a escassez de fontes e por consequência uma rica discussão historiográfica. Poucos se aventuram nestes mares perigosos e desconhecidos, ainda mais se tratando de um assunto tão marginalizado cotidianamente no senso comum. Este fator é determinante para que alguns sejam bem concisos em suas dissertações. Enxergamos aqui este silenciamento de fontes exposto nitidamente na repressão promovida pela polícia política a estes grupos, como era noticiado em jornais da época. Com a intenção de controlar insurreições e possíveis greves incentivadas por lideranças e organizações ideologicamente anarquistas destas atividades sócio-culturais operárias, o policiamento praticava estas incursões “preventivas”.
Tratando  de um período mais a frente  da república, em 1930, quando Getúlio Vargas após assumir o poder presidencial, cria órgãos que vão aos poucos silenciando o teatro “anarquista”. O historiador Gabriel Passeti conta em um artigo o papel da DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) que procurava controlar a produção cultural do país, impedindo a realização de peças teatrais e conferências anarquistas e de teor socialista e anti-capitalista no Brasil. Oferecendo mais tarde outra forma de cultura que se adequasse melhor com o governo nacional que começava a vigorar, o cinema burguês americano.[14]
Partindo da prerrogativa que o teatro pesquisado é amador, interessante é assinalar as dissonâncias presentes nas historiografias consultadas sobre estas atividades artísticas. Talvez por escolha dos autores de demonstrar os pressupostos anarquistas envolvidos no evento, não houve intenção, ou prevaleceu à indiferença de pesquisar mais detidamente as origens e transformações que passaram os teatros operários, interessando-os apenas como chamarizes de uma imprensa anarquista.
Todavia, tomando por base uma pesquisa na área de artes e comunicação, o pesquisador Miroel Silveira vai datar o surgimento das primeiras “sociedades filodramáticas idealistas” em 1895, já com apresentações de peças retiradas de matrizes italianas por um viés notoriamente político. Em 1897, um jornal em italiano noticia a apresentação de Paolo Ferrari, encenando Bruno ‘il dilatore’. [15]
Um dos eixos condutores deste trabalho é o de apresentar um teatro fundamentalmente anarquista, contudo após a verificação das fontes primárias trazidas pela historiografia, a visão unilateral se tornou incômoda e problemática. Havia muitos embates internos e externos referentes aos grupos operários, não existiu no objeto de estudo uma vertente anarquista una, pura ou dotada de pedigree. Estes confrontos ideológicos são latentes até mesmo dentro pensamento anárquico (bastante plural), considerado paradoxalmente doutrinário, libertário, pacifista, violento. Além disso, se encontra relevante dificuldade no tratamento e apropriação que a historiografia usa do  termo “anarquismo”, não caracterizando precisamente outras vertentes existentes neste período. Por exemplo, anarco-comunismo, anarco-sindicalismo ou sindicalismo revolucionário. O principal ponto de cisão que os anarquistas elegem ao criticar os sindicalistas-revolucionários é o caráter de melhoramento no sistema vigente que estes preconizam, ou reformismo, contrariamente ao pensamento mais radical do anarquismo que pretende uma aniquilação promovida no sistema.[16]
Exposto isso, não podemos dizer que a atividade teatral tinha cunho integralmente anarquista, seria muito simplista uma adjetivação neste nível, apenas causadora de impacto semântico, igualmente ideológico. Mesmo que a apresentação teatral tivesse moldes textuais essencialmente anarquistas, esta mesma apresentação era apenas parte de um evento ou cerimônia sócio-cultural que envolvia atividades diferentes tão ou mais importantes para aquela comunidade quanto o teatro anarquista, presente na festa operária. É exatamente o teor e decorrência da festa operária que gostaríamos de tratar mais afinco, uma vez que a apropriação destas pessoas parece dissidente do que consideram a historiografia consultada.
Que o teatro operário anarquista tinha o objetivo de conscientizar o operariado sobre os problemas vivenciados com a exploração de mão-de-obra capitalista e elidir através deste contraste os ideais libertários, isto está provisoriamente fora de contestação após a leitura e análise da historiografia. Entretanto, a forma que a sociedade envolvida se apropriava destes eventos culturais é um ponto para repensar. Ainda além, dizer que o teatro operário anarquista desenvolveu uma consciência de classe é um tanto quanto forçoso.
O jornal “A Plebe”, nos conta aspectos interessantes sobre a realização do teatro. Notamos a presença de crianças e mulheres na “plateia”, o que denota o caráter social de participação de todos os membros da família operária e não somente do homem. As festas operárias aconteciam no sábado, dia em que os trabalhadores dispunham do único tempo na semana, tanto para o descanso, quanto para o lazer. Posto que algumas jornadas de trabalho pudessem durar até 15 horas, há de se convir que os operários não compareciam nestes eventos apenas para beberem uma dose de fundamentos anarquistas.
Um dos documentos mostrados por Maria Thereza Vargas revela a programação do sábado festivo, percebemos que o baile acontecia sempre por último, uma oportunidade de sociabilidade operária que durava até a madrugada de domingo, já, segundo ela, sem a presença das crianças. A averiguação do formato deste baile, o pensamento dos organizadores do evento e participação massiva da sociedade operária, é um ponto interessante de pesquisa, me questiono se a ocasião seria tão atrativa sem o desenvolvimento do mesmo. Paul Lafargue em seu originalíssimo “Direito à preguiça”, inverte a lógica de luta dos movimentos sociais trabalhistas e defende claramente a descontração e o extravasamento no lazer operário, como uma forma de resistência a imputação brutal que a longa jornada de horas na labuta condicionava os trabalhadores.



Uma estranha loucura dominou as classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista. Essa loucura traz como consequência misérias individuais e sociais que há séculos torturam a triste humanidade. Essa loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda que absorve as forças vitais do individuo e de sua prole até o esgotamento.[17]


 Outra evidência do viés sociável da festa são os locais onde são realizados os eventos, enquanto Maria Thereza bate na tecla da preocupação da organização em funcionar mais como difusão das ideias libertárias, pois o público ficava de pé, (não havia cadeiras fixas) para ouvirem atentamente a transmissão das mensagens presentes nos roteiros do teatro. Contudo, nos parece mais conveniente à ideia de um lugar de fácil trânsito para as pessoas e de um espaço necessário para a realização do baile, sendo estes lugares salões abertos.
A favor desta interpretação, ganha mais força pensar que estes eventos aconteciam em bairros principalmente industriais, (inclusive no documento abordado pelo trabalho verificamos o Cassino Penteado, próximo a Fabrica Penteado, situado no bairro do Brás), regiões do município onde as realizações de eventos culturais alheios a esta temática não eram comumente  desenvolvidos neste bairro. Além disso, é particularmente imprescindível entendermos a busca de espaço que havia pelos trabalhadores, uma vez que estes eram segregados pela classe dominante que os viam em condições duplamente perigosas, assalariados e estrangeiros.[18]
É inegável que a realização e perduração relativa deste teatro operário sequer tivesse sido concretizada sem a ajuda, divulgação e incentivo da imprensa anarquista e os grupos ideológicos envolvidos; até porque os ingressos eram vendidos e/ou distribuídos pelos jornais e folhetins anarquistas. A renda, geralmente, era beneficente ao financiamento dos próprios meios de comunicação anarquista, e destinada a famílias ou membros de militância política da causa. Todavia, verificando sobre a renda e os ganhos na festa, percebemos que o total era de valor ínfimo, incapaz de servir para uma ajuda econômica significativa às famílias, quanto mais a financiar grupos de anarquistas internacionais. Preferimos concordar com Edgar Rodrigues que ao abordar o assunto, diz que estes valores arrecadados eram doados simbolicamente em gesto de solidariedade.
Para finalizar, é bastante relevante ver claramente que os aspectos relacionados ao lazer, a diversão e, quiçá, a fruição, funcionavam como elementos subjacentes e ferramentas úteis na luta contra a exploração de um modelo econômico opressor, como bem apontou Lafargue. Não precisamos nos esconder em roupas de super-heróis ou através de uma ética disciplinadora e robótica para lutarmos por aquilo que acreditamos ser essencial para sociedade e para nós mesmos.  Em vista disto, não enxergamos problema algum em desconstruir determinadas explicações que identificam o movimento anarquista como uma continuidade intocável, progressiva e harmônica. Pelo contrário, como o próprio nome diz, movimento é algo que pode se direcionar em várias posições, sem necessariamente, perder o que o torna mais autêntico e sedutor para os anarquistas. Ou seja, a criação e a imprevisibilidade. Pois existem muitas anarquias pululando dentro do anarquismo.



 Munis Pedro Alves é graduando em História pela UFU (Universidade Federal de Uberlândia) e membro do Coletivo Mundo Ácrata.

Notas:

[1] PETRONE, M. T. Schores. Imigração. In: Boris Fausto (org.) História geral da civilização brasileira. São Paulo, Difel, 1985. v. 9. p. 93-133.

[2]MENDONÇA, Sônia. A industrialização brasileira. São Paulo. Moderna, 2000. p. 20

[3]RIBEIRO, Maria Alice R. Fábrica e cidade. In: Revista Trabalhadores. Campinas, Fundo de Assistência à Cultura, 1989. p.13

[4]COLLAÇO, Vera. Intencionalidades didáticas do teatro para o trabalhador. Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008, disponível em www.anpuhsp.org.br.pdf

[5]PARANHOS, Kátia. Militância, arte e política: O teatro engajado no Brasil pós-64. Disponível em http://www.espacoacademico.com.br/062/62paranhos.htm

[6]PASSETI, Gabriel. Cultura no Brás no Início do Século: Teatro anarquista e cinema burguês. Disponível em  www.klepsidra.net/teatroanarquista. Acessado em 17/10/09

[7]VARGAS, Maria Thereza. Teatro Operário na cidade de São Paulo. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento de Informações e Documentação Artísticas, Centro de Pesquisa de Arte Brasileira, 1980. Pp.18-19.

[8]Idem. Pp. 25.

[9]HARDMAN, Francisco Foot. Nem Pátria, nem patrão!: memória operária, cultura e literatura no Brasil/ Francisco Foot Hardman. - 3. ed.rev. ampli. - São Paulo: Editora UNESP, 2002, p.55.

[10]VARGAS, Maria Thereza. Teatro Operário na cidade de São Paulo. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento de Informações e Documentação Artísticas, Centro de Pesquisa de Arte Brasileira, 1980. Pp.33.

[11]( Ibidem. Pp. 37-38)

[12]RODRIGUES, Edgar. Nacionalismo e Cultura Social. Rio de Janeiro: Laemerte, 1972. Pp.80.

[13]RODRIGUES, Edgar. Nacionalismo e Cultura Social. Rio de Janeiro: Laemerte, 1972. Pp.81.       

[14]PASSETI, Gabriel. Cultura no Brás no Início do Século: Teatro anarquista e cinema burguês. Disponível em: www.klepsidra.net/teatroanarquista. Acessado em: 11/06/09.

[15]SILVEIRA, Miroel. A contribuição italiana ao teatro brasileiro: 1895-1964. São Paulo, Quíron; Brasília, INL: 1976. Pp. 61.

[16]PINHEIRO, Paulo Sérgio & HALL, Michael M. A Classe Operária no Brasil. São Paulo: Alfa Omega, 1979. Pp.129.

[17]LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça. São Paulo: Editora Claridade, 2003, p19.

[18]HARDMAN, Francisco Foot. Nem Pátria, nem patrão!: memória operária, cultura e literatura no Brasil/ Francisco Foot Hardman. - 3. ed.rev.e ampli. - São Paulo: Editora UNESP, 2002, p.55.



       O (des)encontro do Brasil consigo mesmo: ditos e escritos de Edgard Leuenroth. [ Parte II]*


O encontro libertário do Brasil consigo mesmo

De forma semelhante aos (re)conhecidos intérpretes do Brasil tais como Darcy Ribeiro, Oliveira Vianna, Paulo Prado, Sérgio Buarque de Holanda, entre outros, que procuraram explicar o Brasil como um país com identidade inconclusa, país do vir-a-ser, Leuenroth, durante um longo período da sua vida de militância anarquista, se juntou ao coro dessas vozes que projetavam o Brasil como um país novo, Brasil de amanhã, país do futuro. E essa sua percepção do Brasil como país do futuro se aproxima dos autores que compartilham o fundo-comum de idéias em que a identidade nacional se apresenta em construção, tão bem explorado na obra alentada de Maria Stella Martins Bresciani, O charme da ciência e a sedução da objetividade: Oliveira Vianna entre os intérpretes do Brasil, marco na historiografia brasileira não só por tirar Oliveira Vianna do limbo historiográfico e inclui-lo entre os intérpretes do Brasil, mas também por colocar em diálogo fecundo vários outros autores que trataram do tema da identidade nacional atravessado pela idéia de carência, de incompletude.Em artigo publicado em abril de 1920, em que denuncia os açambarcadores da riqueza nacional, Edgard destacava:



E o Brasil novo, o Brasil de amanhã, terra de liberdade e de bem-estar, aberta a todos os braços produtores e a todas as inteligências fecundas só se tornará realidade concreta quando, sacudido pelo furacão renovador, arremessar para o lixo da história todas estas castas malditas de parasitas e sugadores que o infestam, que o estiolam, que o aviltam e que o infelicitam.[8]


Apesar de se juntar às vozes dos autores que explicaram o Brasil como o país do amanhã, ainda por se fazer, Leuenroth vaticinava a passagem de um furacão renovador para varrer os parasitas que impediam o Brasil de encontrar a si mesmo. Defendia, em especial, a necessidade do país se livrar da “padralhada” que exercia forte influência católica sobre os governantes, por ele responsabilizados pelos desatinos que impediam o país de encontrar o seu rumo.
Anti-clerical, Leuenroth condenou com veemência, em artigo escrito em 1935, a relação estreita entre poder e Igreja, que se estabeleceu no país desde que o Brasil foi “achado” pela Coroa portuguesa. Afirmou:

sem padres, como se manteriam no poder os que nos exploram e nos oprimem, iludindo os tolos com as perspectivas de um paraíso que somente será dado a quem agüentar tudo bem quietinho, bem mansinho, para que os tiranos não sejam importunados na sua ociosidade e nos seus prazeres da terra? Resultado do catecismo em que a padralhada arde por afogar o Brasil do futuro.[9]



Já nos seus manuscritos, possivelmente escritos quando Leuenroth já adentrava oitenta anos de idade, vê-se o anarquista convicto de que era chegada a hora do país se encontrar consigo mesmo.Vivenciando nos anos 60 o que ele denominou ser a passagem do “furacão renovador” a anunciar o “ocaso dos velhos moldes de civilização” e a acenar uma nova era para a humanidade, sua personalidade inquieta e inconformada, apesar da saúde frágil, o levou a alimentar a esperança de implantar uma sociedade socialista libertária no Brasil, sonho acalentado desde que abraçou o anarquismo, no início do século XX. A mudança deveria se realizar num presente imediato e não num futuro impreciso.
Nos seus escritos de maturidade, afirmou que o Brasil tinha jeito desde que o povo se dispusesse a enfrentar uma transformação radical da sociedade brasileira. Edgard foi além do levantamento dos problemas que faziam do Brasil um país desencontrado consigo mesmo. Ele não só fez um balanço das mazelas que afligiam a população brasileira, mas propôs uma solução libertária para o Brasil deixar de ser o país do futuro e investir, em definitivo, no seu fazer-se. Assim, diferentemente de outros intérpretes que vão ao passado colonial para explicar os desajustes do país, afastava-se do mito de origem ao afirmar que o mal reside na base da organização da sociedade que aqui se constrói, alicerçada no privilégio de uns poucos que exploram os muitos que trabalham para engrandecer o país. Portanto, na base dessa sociedade que era preciso atuar e nela buscar a solução para o país.
Na construção do seu texto, Leuenroth apresenta, inicialmente, um panorama da conjuntura internacional nos anos 60 do século XX e a inserção do Brasil nesse contexto, seguido de um diagnóstico dos problemas que afligiam a sociedade brasileira, acompanhado da sua proposta de solução libertária. Para ele, o mal estar da civilização burguesa atingia os países capitalistas. O mundo atravessava um período de remodelações na vida dos povos, de renovação que não se podia frear. Dizia que o mundo apresentava-se “como se fosse um imenso cadinho de fundição social, dentro do qual se entrechocam os sistemas estatais e de organizações governamentais para a moldagem de novas estruturações de convivência humana”. Ao fazer uso da metáfora da fundição social, procurou mostrar o movimento remodelador das bases fundamentais do sistema capitalista que acreditava estar em curso, principalmente no Oriente e que, segundo ele, em breve atravessaria o Atlântico e chegaria ao Brasil. E diante dessa nova configuração internacional, asseverou que o Brasil deveria enfrentar a situação com “decisão e firmeza e não por espírito de imitação ou, usando uma expressão vulgar, macaqueando ou buscando em outras bandas um modelo pré-fabricado para a nova organização da sociedade”.[10] Ele se posicionou contra a importação de idéias que está na base da reflexão dos autores-intérpretes do Brasil que trabalham com a noção de incompletude quando abordam o tema identidade nacional, recortada pela idéia de carência, do que ainda nos falta para atingir o modelo de funcionamento ideal da sociedade burguesa.
A solução, portanto, dever-se-ia buscar no interior do próprio país, e não na importação de modelos pré-fabricados. Para ele, nossos problemas só podem ser solucionados por quem aqui vive, trabalha, produz e concorre para o progresso do país. Para enfrentar o que chamou de quadro de chocante desequilíbrio do Brasil, de contraste, de fosso entre uma pequena elite que desfruta as benesses e os prazeres do sistema capitalista e mantem a grande maioria da população brasileira mal alimentada, mal vestida, roída na sua saúde e mantida na ignorância, defende como única solução “substituir o regime de privilégios dominante que concede aos capitalistas, senhores de todos os meios de produção, o direito de vida e de morte do trabalhador”.[11] Advoga o pertencimento do Brasil a todos os brasileiros efetivamente. E conclama todos que aqui vivem para o dever da luta, para se engajarem na campanha pela transformação do país a fim de libertá-lo das amarras que o impedem de encontrar-se a si mesmo.
Assevera que a reforma da sociedade brasileira deveria caminhar para o socialismo libertário. Mas, ele sabia que o maior obstáculo nessa cruzada libertadora seria enfrentar a “mentalidade atrofiadora do conformismo” que impinge respeito e submissão à ordem constituída. Sua palavra de ordem: reagir, lutar para libertar o país “de uma vez para sempre, dos elementos reacionários que não cessam de criar empecilhos aos anseios libertários do povo brasileiro... somente assim desaparecerá as causas da miséria e da opressão”.[12]
Miséria e opressão. Dois temas candentes que atravessam os escritos de Leuenroth. Para ele, os elementos propulsores da dinâmica burguesa, “odioso círculo com o qual a burguesia defende os seus privilégios em detrimento dos interesses do povo brasileiro”. Ao traçar o panorama da sociedade brasileira, aponta a distribuição desigual de riqueza, “o cenário chocante que apresenta a vida brasileira.... desde os seringais da Amazônia aos pampas sulinos... a carestia de vida que convive com taxas de lucro extraordinárias”. Diante deste quadro, afirma que os problemas do país são inerentes ao regime capitalista de produção e somente uma nova organização da sociedade brasileira, pautada nos princípios anarquistas “haverá lugar para todos que queiram participar do convívio social na base dos direitos correspondentes aos deveres, para que dos esforços comuns resulte igual soma de bem-estar para todos. Não poderá, entretanto, haver lugar para quem pretenda viver da exploração do trabalho do próximo”.[13].
Nos manuscritos, vê-se o anarquista convicto de que é chegada a hora do país encontrar seu rumo. O futuro do Brasil dependia de reformas de base na sociedade brasileira. Com apelo reformista, propôs um projeto revolucionário com o objetivo de



suprimir a exploração do homem pelo homem, exercida por meio do salariato – característica da organização burguesa -, pondo dessa forma fim à divisão da sociedade em classes com interesses econômicos antagônicos... concomitantemente será abolido o Estado – órgão mantenedor da sociedade capitalista – que com sua engrenagem coatora, burocrática, extorsiva impede a estruturação da sociedade baseada numa organização federativa livre de todas as atividades produtivas do povo brasileiro.[14]

Nos seus apontamentos sobre os elementos favoráveis à organização do socialismo libertário no Brasil, responde a uma indagação que diz ser alimentada por dúvidas provocadas pela perspectiva dessa radical remodelação da nossa estrutura social, qual seja, se seria possível funcionar a atividade coletiva do país com a devida eficiência sem a utilização do Estado hoje dominante. Com sua verve libertária argumenta:


Parece-nos, entretanto, mais lógica a manifestação de estranheza provocada pela constatação de haver quem ainda julgue necessária a existência do Estado como fator de ordem social. Essa consulta encontra explicação no fato de se atribuir ao Estado o mérito da gestão da sociedade...Torna-se, pois, necessário examinar se esse conceito encontra alguma confirmação objetiva na realidade que todos estamos vivendo. Como ponto de partida deste exame, ter-se-ia de colocar o Estado no pelourinho de um julgamento social e submetê-lo a um estudo que deveria ter começo em sua origem e finalidade e, acompanhando o seu desenvolvimento, fazer-se a exposição dos resultados de sua obra no decurso de sua já longa existência diante a qual – num processo de metamorfose social – tem tomado as formas que a história registra.[15]



         Em sua avaliação cáustica sobre as diferentes experiências de regimes governamentais do Brasil, apresenta o regime colonial como “dominador e extorsivo”, a monarquia “estática e dominadora” e a república, desde 1889 até o presente “ainda não se fez a verdadeira República, ou seja, aquilo que está contido na definição etimológica: coisa pública, coisa do povo, portanto, coisa de todos e de cada qual e, na vida coletiva, administração das coisas e não do Estado-polvo, triturador da liberdade individual e sugador do produto do esforço da comunidade”.[16]
Leuenroth apregoa que a vida social deve se desenvolver à margem do Estado, considerado por ele “órgão parasitário, surgido por meio da violência e da astúcia para ser um instrumento governamental de domínio e de sucção”.18 Ancorado nas reflexões de Kropotkin, anarquista russo, sobre o papel do Estado afirma que o Estado surgiu quando a vida coletiva já tinha estabelecido suas normas de convívio social e que a sociedade pode, portanto, viver sem ele.
O seu projeto para reformar a sociedade brasileira aponta para uma única direção:o caminho para o socialismo libertário. E justifica a viabilidade da sua proposta argumentando que ela foi construída “de acordo com a evolução histórica do Brasil e dentro das condições atuais do ambiente brasileiro... A organização é prática, racional e sobretudo humana... sem artificialismos ou normas importadas, isento da preocupação de adotar denominações modernizadoras e estranhas aos nossos hábitos”.[18]
Observador arguto da realidade brasileira e participante ativo nos protestos e manifestações públicas, durante mais de meio século de vivência em terras paulistanas, ele se insurgiu contra os descaminhos do país que se refletiam na pobreza degradante em que vivia parcela significativa da população brasileira, nas condições ultrajantes de trabalho a que estava submetida a maioria dos trabalhadores e que conviviam com a contrastante ostentação de luxo de um grupo minoritário de pessoas que conduziam o país de acordo com os interesses de alguns poucos beneficiados. Inspirando-se no pensamento de Kropotkin, que definiu o anarquismo como uma ciência do social e pautando-se em princípios libertários e preceitos científicos, Leuenroth postulou a necessidade de uma reestruturação da sociedade brasileira, na qual o indivíduo seria sua unidade essencial e o solidarismo a sua força propulsora. Na nova organização social do Brasil, que tem a solidariedade como princípio fundante da organização livre, torna-se imprescindível organizar a sociedade de modo que “a terra e os instrumentos de produção, todos os bens sociais produzidos pelo esforço comum, sejam postos como patrimônio comum que são, a serviço da produção destinada a satisfazer as necessidades coletivas e não as ambições de riqueza de uma minoria capitalista”.[19]
Para enfrentar o que chamou de “regime de desordem imperante”, em que vigora a penúria na abundância, por ser o Brasil possuidor de grandes riquezas potenciais que não pertencem efetivamente a todos os brasileiros mas a uma minoria de sua população, ele insiste na necessidade de levar adiante uma campanha destinada a enfrentar, de maneira corajosa, o mal radical que reside no regime capitalista de produção, no qual os capitalistas detém o monopólio da riqueza produzida direta e efetivamente pelo povo trabalhador que, no entanto, constitui a classe pobre, sujeita às agruras de escassez do mais essencial à vida.
A solução apontada por Leuenroth é “substituir o regime de privilégios dominante que concede aos capitalistas, senhores de todos os meios de produção, o direito de vida e de morte sobre o trabalhador”. Por acreditar no que chamou de “inegável pendor libertário do povo brasileiro”, manifestado em movimentos de rebeldia reivindicadora ao longo da história brasileira, Edgard apontou a necessidade premente de despertar o povo brasileiro do marasmo e da indiferença em que ele se encontrava e incitá-lo a lutar para se libertar, de uma vez para sempre, dos elementos reacionários que fazem prevalecer os seus interesses particulares em detrimento dos interesses da população brasileira.
Repartir o que já existe em prol do bem-estar comum: seu ponto de partida para mudar a situação existente. Sem destruições, nem violências. Os bens existentes, argumenta, são resultados dos esforços da geração atual e das anteriores e devem ser conservados e utilizados de acordo com os interesses da coletividade brasileira e não em proveito de uma minoria parasitária que comanda os destinos do país. A questão crucial que se coloca é sobre a possibilidade prática de se operar a reforma tão radical, vencer o atrofiador conformismo do povo brasileiro com o que existe, o respeito e submissão à ordem constituída, ao princípio de autoridade. Para Edgard, isso resulta do conceito retardatário e reacionário da intangibilidade do regime capitalista. Conformismo e resistência se mostram como interfaces do modo de agir, mas ele insiste no pendor libertário do povo brasileiro para levar adiante esse seu projeto revolucionário, que incide na radical reformulação da estrutura sociedade brasileira para tornar possível o funcionamento da atividade coletiva do país, de maneira eficiente, por meio da mútua cooperação.
Na sociedade socialista libertária, projetada por Leuenroth, o indivíduo seria sua unidade essencial e o solidarismo do povo brasileiro a força propulsora da nova sociedade, baseada no princípio de apoio mútuo, cujo lema “um por todos, todos por um” dispensa o Estado, o patronato e as formas intermediárias. A (re)estruturação da sociedade brasileira está assentada no federalismo libertário, princípio, como afirma Proudhon, que se opõe ao unitarismo centralizador e salvaguarda a soberania individual e a dos grupos que se constituem por afinidades de interesse e de costumes. O federalismo orienta-se pelo respeito à integridade da autonomia da unidade no conjunto, desde as atividades agremiativas nas comunas (municípios), destas em federações (profissionais, técnicas, científicas, culturais, recreativas,etc) e finalmente nas confederações. A comuna goza de ampla autonomia e é baseada no princípio da administração das coisas e não na ação governamental sobre os indivíduos. Ela é a expressão dos interesses de cada localidade e dela fazem parte o indivíduo-munícipe na sua dupla condição de produtor e de consumidor. A harmonia social está fincada no entrosamento produtor-consumidor. Com isso, rompe-se o círculo vicioso da carestia dentro da abundância, pois o aumento da produção representa perspectivas de benefícios para os consumidores e, assim, deixa de atender a finalidade capitalista de gerar lucro e acumular riquezas e deixar na penúria o povo trabalhador.
Seu projeto de reformar a sociedade brasileira é para que todos possam ter futuro.Se o mal reside na base do atual sistema, é nela que se deve atuar na busca de uma solução urgente e definitiva para os males que atormentam e que levam ao desassossego o povo brasileiro. O regime que propõe é o de bem-estar e de liberdade para todos, no qual todos os brasileiros desfrutem a igualdade de direitos em todas as modalidades de convivência social. Para o começo de uma nova era para o país, na qual se tem a igualdade como base, a liberdade como meio e a solidariedade como fim, acredita ser imperativo histórico do povo brasileiro considerar obsoleto o regime de exploração capitalista e lançar-se na construção de uma nova ordem social fundada na harmonia, que resulta da prática do livre acordo, da ajuda mútua. Agir nesse sentido significa suprimir a exploração do homem pelo homem. A fim de tornar efetiva essa transformação, Edgard afirma ser necessário a abolição do Estado – órgão mantenedor da sociedade capitalista, com sua engrenagem coatora, burocrática e extorsiva – que impede a estruturação da sociedade baseada numa organização federativa livre de todas as atividades produtivas no país. Em seguida, deve-se socializar o patrimônio social que se encontra em poder de empresas, instituições, do Estado e de particulares, a ser repartido de acordo com o lema: “de cada um as suas possibilidades, a cada um segundo suas necessidades”. Propõe abolir cargos autoritários, instituições parasitárias, títulos de propriedade e distinções e privilégios. O trabalho constitui o elemento básico da vida na sociedade socialista libertária brasileira “mediante o qual será assegurado, em igualdade de condições, a todos os elementos produtores do país, o bem-estar facultado pelo patrimônio resultante do esforço coletivo”.[20]
Com base em princípios racionais e científicos do anarquismo, Leuronth propõe construir no Brasil a sociedade socialista libertária, libertando assim o país dos seus entraves: o regime de concorrência, do lucro, da tirania, do Estado. Considera que o seu projeto “reflete uma afirmação de consciência alimentada por princípios bem sentidos e bem pensados, uma afirmação de propósitos de ação, serena mas decidida contra todas as formas de tirania, de exploração e de embrutecimento contra o povo e de luta em prol da liberdade e bem-estar para todos”.[21]
Na sociedade assim concebida, todo brasileiro poderá aspirar a uma vida digna com o desfrute de uma alimentação saudável, um lugar para morar, acesso à instrução, à saúde com investimento em medicina preventiva, às ciências, artes e letras.
Implantar o socialismo libertário no Brasil. Eis o sonho acalentado por Leuenroth. Eis o seu modelo de sociedade do bem-viver. Nos seus escritos, ele se insurge contra a indiferença, a insensibilidade e a ganância dos que acumulam riquezas e se voltam para si mesmos. No mundo contemporâneo em que grassa o egoísmo, o individualismo desenfreado, a ascensão da insignificância e da arrogância, trazer à tona os escritos de Edgard reatualiza as preocupações dos que se importam com bem-estar social, com o viver junto em harmonia compartilhando conquistas e desafios. Por acreditar na possibilidade de uma humanidade mais fraterna e solidária, Leuenroth repõe, no seu projeto libertário, a fantasia, a imaginação, a esperança, a utopia. Sua proposta de solução dos problemas do Brasil encerra em si a frase de Gandhi: “se queremos progredir, não devemos repetir a história, mas mudar a história”.

Christina Roquette Lopreato é doutora em História Social. Dedica-se ao estudo do anarquismo no Brasil. Professora da Universidade Federal de Uberlândia, Instituto de História, Campus Santa Mônica, Uberlândia, Minas Gerais.

Notas:

[8] LEUENROTH, Edgard. A organização dos jornalistas brasileiros 1908-1951. São Paulo: Com-Arte, 1987, p.27.

[9] XISTO, Leão (pseudônimo de Edgard Leuenroth). “Afinal, quem são os extremistas?”. A Lanterna, São Paulo, 05 de outubro de 1935, no. 401, p.1.

[10] LEUENROTH, Edgard. Qual a solução para o Brasil? Texto digitalizado, p. 6.

[11] Idem, ibidem, p.1.

[12] LEUENROTH, Edgard. Qual a solução para o problema do Brasil? Texto digitalizado, p.4.

[13] Idem, ibidem, p.13.

[14] LEUENROTH, Edgard. Qual a solução para o problema do Brasil? Texto digitalizado, p. 22.

[15] Idem, ibidem, p.16.

[16] LEUENROTH, Edgard. Qual a solução para o problema do Brasil? Texto digitalizado, p. 5.

[17] Idem, ibidem, p.18.

[18] Idem, ibidem, p.46.

[19] LEUENROTH, Edgard. Qual a solução para o problema do Brasil? Texto digitalizado, p. 5

[20] Em suas anotações, Leuenroth considera que “naturalmente, estarão isentos dessa obrigação as pessoas que a isso estejam impedidas em conseqüência de enfermidade, invalidez ou outras circunstancias de força maior”. Cf. Qual a solução para o problema do país? Texto digitalizado, p.24.

[21] LEUENROTH, Edgard. Op.cit., p.46.





O Teatro do Bem e do Mal e a “Crise” na Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro*

  “Por que é a nossa destruição que eles querem,
física e mentalmente o mais que puderem.”   
                               
                                     ( Us Neguin Q  Não Se Kala)



     Já dizia o grande poeta e jornalista uruguaio Eduardo Galeano, em uma de suas mais célebres frases, que na luta entre o bem e o mal, é sempre o povo que morre. No caso do Rio de Janeiro, estado que se tornou o “laboratório” oficial da política de segurança “pública” (privada) desejada pelas elites, tal frase não poderia assumir mais credibilidade do que já tem. E além deste maniqueísmo, reflexões políticas se impõem com a mesma urgência e gravidade dos fatos.
Há alguns anos, o estado é alvo de uma política de segurança tenebrosa, um verdadeiro terrorismo de estado que busca servir não só de referência nacional para o tratamento das questões sociais, mas intenta transformar a cidade em uma urbe turística, onde os pobres não combinam com a decoração do palácio carioca sonhado pelos “Eike Batistas” e pelos empresários do setor hoteleiro e da construção civil. Tais iniciativas, hoje no campo da “segurança pública” e da reforma urbana, nos remetem, sempre de modo atual, aos primeiros anos do século XX, quando a ação do estado orquestrada por parte das elites econômicas, modernizava arquitetonicamente a cidade, preocupada com a imagem do “país”, mas aterrorizava e despejava os trabalhadores, tratando a questão social como caso de polícia.
Os marcos desta política podem ser facilmente reavivados em nossa memória coletiva. Em 2006 com a realização dos jogos Panamericanos, sob desculpa da proteção das delegações estrangeiras, o governo federal armou e melhor equipou as forças repressivas do estado do Rio, prenunciando a barbárie que estaria por vir. Permitindo-nos determinadas alusões históricas, se Guernica foi o ensaio da Segunda Guerra Mundial, onde os nazistas puderam testar pela primeira vez seus equipamentos mortais contra a população civil, o Complexo do Alemão foi a Guernica do fascismo institucional da política de segurança pública, que em 27 de junho de 2007 assassinou 19 pessoas, 11 destas, sem nenhum tipo de envolvimento com o tráfico de drogas. Relatórios posteriores[1] produzidos pelos peritos indicavam que muitas das mortes foram execuções à queima-roupa, o que colocava em xeque a tese dos jornalistas que defendiam a polícia quando ocorriam as chamadas “mortes pelo confronto” durante as incursões policiais; eufemismo para rotineiras execuções e pena de morte não-oficial, geralmente aplicada ao nosso povo pobre e negro, as principais vítimas do genocídio policial.
Na época da chacina, assumida oficialmente pelo Estado, jornais da imprensa burguesa no Rio de Janeiro publicaram com grande destaque sensacionalista, mas como de costume, pouca reflexão crítica, fotos de vários corpos e o chão das vielas do Alemão completamente sujo de sangue comparando a ação, a Guerra do Iraque. Posto em destaque pelos editores do jornal, um policial militar fumando charuto foi transformado repentinamente no símbolo da nova política de segurança. Um xerife, que se regozijava no meio da “guerra” a apreciar seus charutos após o fim das operações; cena macabra, que foi consolidada como o exemplo de “bom mocismo” policial, um “John Wayne” que exterminava, ao invés de índios, pobres, favelados e negros. Um representante da tropa do “bem” do governo estadual.
A partir de então, o discurso assumido pelos intelectuais de direita, pelos políticos e por grande parte da classe média alinhada com o projeto das elites se pautou pelo discurso da guerra urbana, discurso que se consolidou com o lançamento do primeiro filme Tropa de Elite que, curiosamente, fora lançado poucos meses depois da chacina do Alemão. Coincidência ou não, deu carta branca ao BOPE e à polícia do estado para exceder as regras mais básicas do Estado de Direito, que paulatinamente revelava sem máscaras seu real conteúdo: um Estado de “Direita”[2].
O argumento da mídia e do governo passou a assumir contornos de “Capitão Nascimento”: a perda de inocentes na guerra contra o tráfico fazia parte, por esta lógica, das “baixas” necessárias à eliminação do poder do tráfico no Rio de Janeiro, localizando o tráfico apenas nas regiões pobres e periféricas, ignorando sua complexidade e extensão internacional. Esqueceram também de avisar que estes inocentes mortos eram (e são) sempre trabalhadores negros e favelados. O discurso “Tropa de Elite” (remodelado cinematograficamente em sua segunda edição – ainda, mas menos explicitamente fascista) ganhou as bocas de grandes setores da classe média e preparou o terreno para ações ainda mais espetaculares para controlar as “classes perigosas”.
Com a escolha do Rio de Janeiro como Cidade-Olímpica e uma das sedes da Copa do Mundo, e com um nível de popularidade que transbordava a marca dos 80%, o governo federal lulista fornecia “gordura” para seus aliados queimarem. Os níveis de popularidade do governador Sérgio Cabral também eram propícios para uma ação radical da direita. A conjuntura era favorável. Um suposto ataque coordenado do narcotráfico daria o motivo “ideal” para a ação do governo estadual.
Viria então a “retomada”, obviamente apenas militar, do território do Complexo do Alemão, que pelas palavras[3] do Secretário de Segurança Pública, naquele momento, era “o coração do mal”. A ação não poderia ter vindo sem um novo discurso[4] produzido nas salas das edições de jornal; profundamente alinhadas com o discurso oficial da secretaria de segurança pública e do governo federal a ponto de, em diversos momentos, não sabermos bem onde terminava a ponta da caneta e começava o gatilho do fuzil. A estratégia de produção do discurso se pautava então pela lógica maniqueísta da luta do bem contra o mal; perfeitamente assinalada pela entrevista do secretário Beltrame e estampada pelas fotos das tropas policiais nos jornais, com legendas que sugeriam mais um fundamentalismo religioso do que propriamente uma cobertura jornalística.
Depois de uma ação espetaculosa e contando com apoio Federal, tanques de guerra e largos contingentes da polícia foram mobilizados para “cercar” o Alemão, tentando prender parte dos varejistas do tráfico de drogas. No fim da operação um saldo bem abaixo de presos decepcionava parte dos jornalistas corporativos, ávidos pela vingança contra os párias que ameaçavam a propriedade privada alheia e povoavam o imaginário das elites de temores.
Moradores do Alemão nesta época, já denunciavam nas redes informais, apesar de desacreditados pelo discurso oficial, que a alta hierarquia do tráfico de varejo (pois a do atacado evidentemente não vive nas comunidades), já tinha conseguido fugir (ocultados em viaturas) com ajuda de outros “colegas de trabalho”, ou seja, os cowboys do secretário de segurança, todos policiais civis e militares: a chamada “tropa do bem”.
O Complexo do Alemão rapidamente tornou-se um garimpo policial. Pelas palavras de um soldado divulgadas pelas recentes investigações da Polícia Federal, o Complexo virou uma “Serra Pelada[5]. Nessa nova Serra Pelada, as forças de segurança garimpavam o ouro das jóias dos traficantes e, principalmente, a montanha de dinheiro vivo da venda de drogas. Muitas drogas e armas foram apreendidas para que fosse encenado o espetáculo da grande imprensa, mas inacreditavelmente nenhum montante de dinheiro foi apreendido e nem mostrado na Tv. Será que o narcotráfico do Alemão só aceitava cartão de crédito?
O “garimpo” também incluiu o roubo dos bens dos moradores e trabalhadores das comunidades. Este foi o caso de um morador da Vila Cruzeiro, que teve uma rescisão trabalhista de 31 mil reais roubada[6] por policiais. Temeroso de que algum repórter mais escrupuloso resolvesse dar crédito a opinião da comunidade, o comandante geral da PM proibiu, poucas horas depois do início da operação, que os policiais-garimpeiros de realizassem incursões[7] com mochilas para tentar “melhorar” a imagem da polícia na comunidade; mas o botim de “guerra” prosseguiu.
O caso específico da “Serra Pelada” do Alemão revela algo de uma maior amplitude. Sempre houve relação direta, benefício econômico, e organização conjunta do comércio de tráfico de drogas com as instituições policiais do Estado. É falso sustentar o discurso dos “maus policiais” que “mancham” a imagem da corporação. A cultura do botim, da revenda de materiais do tráfico de varejo e da associação sempre direta e próxima entre instituição policial e tráfico de drogas é algo que já está devidamente enraizado na cultura policial do Rio de Janeiro.
A queda recente do subsecretário da Polícia Civil e mais de vinte policiais comprovadamente envolvidos num esquema de venda de fuzis para facções de traficantes e milicianos comprova um velho ditado popular de que “a oportunidade faz o ladrão”. Enquanto combatia determinadas facções de traficantes, o subsecretário dava apoio a uma “milícia” (paramilitares) em Ramos, na Zona Norte do Rio de Janeiro. O subsecretário, que foi preso, era o braço direito do chefe da Polícia Civil Alan Turnowsky, que também foi exonerado.
Este caso particular revela um comportamento mais amplo, que pode indicar uma lógica política em funcionamento. Para captarmos esta lógica, que implica uma relação de dominação, precisamos trocar nossa lente de análise, e enxergar a ação do poder, que neste caso vira opressão, a partir de sua capilarização. Traduzindo, precisamos entender a política de segurança não apenas a partir dos “gabinetes” e dos discursos de sua cúpula, mas da ação concreta de seus agentes. Quando falamos política de segurança pública, não falamos apenas dos pronunciamentos do secretário de segurança, falamos de fato, da ação concreta de policiais e agentes de segurança do estado nas comunidades e que já ocorre há anos, a despeito de quem ocupe o cargo máximo desta secretaria.
  Já parece mais do que óbvio que o crescimento das milícias paramilitares controladas por policiais da ativa e da reserva, bombeiros e ex-policiais acompanha a repressão do governo ao tráfico em determinadas comunidades[8]. Decresce o tráfico, cresce a milícia.
Com o enfraquecimento de determinadas facções, as milícias ocupam agora os bairros outrora dominados pelos traficantes. É como se o projeto inicial, em longo prazo, fosse substituir o tráfico de drogas, muito mais espalhafatoso e potencialmente prejudicial às campanhas políticas dos envolvidos[9] (por serem pouco confiáveis de controle), pelas milícias administradas por redes mais estáveis. Estas redes são mais confiáveis para a manipulação de caciques políticos estaduais e municipais. Inserida dentro da hierarquia do Estado, a milícia e seus paramilitares, são instrumentos mais passíveis de utilização. Além disto, do ponto de vista da administração capitalista, parecem mais eficientes em explorar e oprimir trabalhadores. Cobram taxas como empresas profissionais: gás, TV a cabo, transporte, venda de imóveis e aluguel; nada foge do controle dos milicianos. Do ponto de vista da racionalidade capitalista[10] e do lucro são mais “agressivas” que seus concorrentes narcotraficantes. Como as milícias atravessam o quadro institucional da própria estrutura da secretaria de segurança pública e da Assembléia Legislativa, seu controle pelo governo torna-se mais ágil, fácil e barato, já que envolve apenas, um rearranjo institucional, caso obviamente hajam problemas com a opinião pública (na verdade, problemas com a mídia privada).
 Para provarmos esta nossa hipótese, basta lembrar que o uso do aparato do Estado por milicianos não é fruto de algum roteiro de ficção científica. Desde 2007, denúncias de moradores e de organizações não-governamentais apontavam aquilo que a imprensa corporativa negava; policiais alugaram blindados (caveirões)[11] para diferentes facções de traficantes e milicianos para tomar as bocas de fumo das quadrilhas rivais. Além disto, em recente reportagem, o delegado titular da Delegacia de Repressão ao Crime Organizado (DRACO) Cláudio Ferraz[12], revelou que em um diálogo interceptado por uma investigação, um sargento da PM articulava com outro miliciano uma operação da Polícia Civil na Favela da Coréia. Como diria o espírito belicoso de Tio Sam, war is business[13] e negócios são negócios.
Além disto, há outro fator importante. O projeto das UPP’s tem um custo elevado para as elites econômicas e políticas, não podendo ser facilmente massificado. As milícias estando sob a tutela de redes de poder inscritas institucionalmente dentro do Estado, possuem um efeito colateral (ou planejado) de “aliviar” os custos de possíveis UPP’s nas comunidades dominadas pelo tráfico.
Concluímos deste modo que o teatro do bem e do mal construído pela mídia, que opõe cotidianamente tráfico de drogas e forças policiais como se fossem coisas opostas, não é nada mais do que uma mentira construída, a qual o anarquista Noam Chomsky chama de “Consenso Fabricado”. A crise na polícia civil do Rio de Janeiro é apenas a divulgação de procedimentos internos que não nos são acessíveis pelo filtro midiático, sempre cioso por proteger a imagem das instituições burguesas.
E quando o “John Wayne” da polícia militar – o fã de charutos franco atirador – é surpreendido numa gravação da Polícia Federal negociando armas apreendidas no Complexo do Alemão com traficantes, a outrora “tropa do bem”, sob discurso midiático, repentinamente transforma-se em “maus policiais”. Mas nós sabemos que não são “maus policiais”. Eles são de fato, a política de segurança publica do Estado, REAL E CONCRETA, e que em nome do combate ao narcotráfico, mata ou oprime nosso povo, revelando o conteúdo de classe[14] da própria instituição policial.
A partir de então, não há mais fotos nos jornais, nem alcunhas “santas” nas televisões, apenas promessas de redenção e “limpeza” da polícia[15], quando nós sabemos que algo que troca constantemente de roupagem, já deve estar “sujo” há demasiado tempo para que se façam correções.
Com tudo isso; guardadas as muitas semelhanças com a frase de Eduardo Galeano, nos servimos de um trecho de um RAP, que resume o histórico da segurança “pública” das elites com muito mais objetividade e sinceridade do que as habituais análises do especialista em segurança pública da rede Globo, e ex-capitão do BOPE Rodrigo Pimentel: “muito preto e muito pobre eu sei que incomoda os nobres[16].

FARJ (Federação Anarquista do Rio de Janeiro)


Notas:
*Artigo disponível em:
http://www.farj.org/


[1]Cf. Relatório da União acusa operação policial no Rio de "execução sumária" http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u341949.shtml

[2] Sobre as origens de classe da Polícia, recordemo-nos que no Estado do Rio de Janeiro a polícia era também responsável pela captura de escravos fugitivos.


[4] Comprovando a materialidade e o poder do discurso não como mero reflexo de uma barbárie, mas ele próprio, produtor e produto de uma nova barbárie.

[5] Garimpo de ouro no sul do Estado do Pará que nos anos 1980 atraiu milhares de garimpeiros. No apogeu do garimpo, em 1983, foram extraídas 14 toneladas de ouro.



[8] As UPP’s construídas pelo Estado foram feitas exatamente nos locais onde ocorrerão as provas dos jogos olímpicos e os jogos da Copa do Mundo. Obedecem estrategicamente, os desejos dos empreiteiros do mundo dos esportes.

[9] Há um vídeo “constrangedor”, onde o prefeito do Rio de Janeiro Eduardo Paes defende a retomada do controle do território do tráfico pelo Estado, utilizando como parâmetros, o exemplo da atuação das milícias. http://www.youtube.com/watch?v=nRBInXHeo8Y&NR=1

[10] Não é de se espantar que junto com as UPP’s chegam também as empresas capitalistas dos diferentes ramos de serviços e comércio nas comunidades onde estas foram instaladas.

[11] Segundo reportagens: “O Terceiro Comando alugou o Caveirão da PM e arrebentou com tudo aqui dentro. Não tem negócio com aquele bicho, é morte certa mesmo", disse D.S, iniciais de um morador do Complexo da Maré. Segundo ele, o Terceiro Comando, uma das 4 facções do tráfico na favela, se utilizou do blindado da PM para tomar um estratégico território de uma facção rival do complexo. Outros moradores confirmam a história e, segundo eles, a locação do Caveirão por apenas um dia teria saído por R$ 12 mil. http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI4328373-EI5030,00-Dia+Na+Mare+Caveirao+e+inundado+de+criticas+e+leva+medo.html

[12]http://br.noticias.yahoo.com/s/17022011/25/manchetes-delegado-diz-milicia-usava-estrutura.html

[13] Tradução: Guerra é negócio.

[14] O que acaba com a tese do “trabalhador do ramo da segurança” ou do “companheiro policial”. Historicamente a polícia sempre foi um instrumento das classes dominantes. Apoiar politicamente a “categoria” policial é apoiar o extermínio de parte da nossa classe.

[15] Troca-se então o comando da polícia. Procedimento habitual que esconde que mesmo com a troca de comando, os procedimentos internos arraigados continuarão existir na estrutura policial, pois circulam à despeito das figuras que ocupem os cargos em questão. Em suma, a troca de comando é apenas uma prestação de contas do governo com a sociedade “civil”, inútil, mas eficaz como artifício de propaganda.

[16] Trecho da música Atividade, do cd “Só PA Tu Se Ligar” do grupo de Rap US NEGUIN Q Ñ C KALAN.




ENTREVISTAS

O mundo árabe está em chamas


As revoltas que explodiram no mundo árabe no Iêmen, Tunísia e agora no Egito apanharam todos de surpresa. Constituem, sem sombra de dúvida, um dos acontecimentos mais relevantes do nosso tempo e são um sinal claro de que já não é possível, em lugar nenhum, continuar-se a ser um joguete de ditador com o apoio imperialista. Os regimes extraordinariamente autoritários como os de Ben Ali revelaram-se completamente impotentes perante um povo com grande determinação, unido na luta. São jovens, trabalhadores, desempregados, pobres, os que levam a cabo esta tarefa de mudar o rosto da região provocando calafrios aos mandantes de Washington e de Tel Aviv. Nem todas as armas do regime de Mubarak, nem toda a ajuda militar dos EUA, conseguiram controlar a extensão do protesto. Os rebeldes revelam o poder do povo e da classe trabalhadora quando se unem, a capacidade política dos homens e mulheres comuns para formar organismos de poder dual, com um claro instinto libertário para além de demonstrarem ao mundo que nos encontramos já numa era de mudanças revolucionárias. Estabelecemos um breve diálogo com o nosso companheiro e amigo Mazen Kamalmaz, da Síria - editor do blog anarquista árabe http://www.ahewar.org/m.asp?i=1385 - que nos falou da importância deste esplêndido acontecimento político.

Pergunta > Parece que toda uma repentina onda de protestos massivos está a sacudir as fundações dos velhos regimes opressivos no mundo árabe… havia indícios de que isto poderia suceder?
Mazen Kamalmaz < Este é um dos aspectos mais interessantes da onda revolucionária que se está a expandir por todo o mundo árabe que chega quando nada o fazia prever. Ainda alguns dias antes das manifestações massivas e sucessivas no Egito a Secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, declarava que o governo egípcio era estável e neste momento nada é estável na região: a insurreição mantém-se de pé e para todos os regimes repressivos espera-se o pior. Há aspectos que se reportam a todas estas sublevações tais como a raiva e ressentimento que estavam escondidos, silenciados pela repressão dos Estados, a pobreza e o desemprego crescentes - a que os regimes, estadistas e até intelectuais não prestaram a devida atenção - em relação aos quais os governos, locais ou ocidentais, pensaram que poderiam manter a revolta sob controle… agora sabemos como se enganaram.
Pergunta > Qual a importância da saída de Ben Ali do governo da Tunísia?
Mazen < Este é apenas o primeiro passo do que está para vir. Supõe que o povo, o povo em luta, consegue desafiar a repressão e vencer. É muito cedo para falar sobre o desenlace final, é tudo demasiado complexo ainda, mas o povo já conseguiu ter consciência do seu poder real e apesar disso mantém-se na rua, de modo que a luta ainda se encontra aberta a muitas possibilidades.
Pergunta > Para aonde se está a expandir a revolta? Que países podem experimentar rebeliões massivas?
Mazen < Hoje pode-se afirmar seguramente que qualquer um poderia ser o próximo. Talvez a Argélia, Iêmen ou Jordânia sejam candidatos fortes, mas temos de ter em conta que uma revolução no Egito teria um grande impacto na região, impacto esse que superaria os piores pesadelos dos ditadores e dos seus partidários na região.
Pergunta > Qual seria a relevância de uma revolução no Egito, o segundo maior receptor de ajuda militar estadunidense em todo o mundo?
Mazen < O Egito é o país com as maiores dimensões do Oriente Médio e o seu papel estratégico é muito importante. É um dos principais pilares da política estadunidense nessa região. A pressão das massas é um fator a ter em conta daqui pra frente, inclusive em relação à sobrevivência do velho regime resistir durante algum tempo mais ou não, ou se o novo regime será pró estadunidense. Resumindo, os EUA, o principal apoio do regime atual, irá sofrer o efeito da rebelião das massas egípcias.
Pergunta > Qual o papel dos Irmãos Muçulmanos nestes protestos? E da “velha guarda” da esquerda?
Mazen < Um aspecto muito importante destas manifestações e revoltas é que tiveram uma origem totalmente espontânea e iniciada pelas massas. É verdade que os diferentes partidos políticos juntaram-se a elas mais tarde, mas todo o processo foi, em grande medida, uma manifestação de ação autônoma por parte das massas. Isto é também válido para os grupos políticos islamitas. Embora estes ditos grupos pensem que as futuras eleições os poderiam levar agora ao poder, com as massas em rebelião nas ruas isso será difícil, dado que se negaram ativamente a submeter-se de novo a outro poder repressivo, mas mesmo no caso que isso sucedesse, o povo não aceitaria ser submetido nesta ocasião, enquanto se mantém fresca para a maioria a memória eufórica das parcelas de liberdade que alcançaram através da sua própria luta. Nenhum poder os poderia forçar facilmente a submeter-se de novo a algum regime repressivo.
Outro aspecto a ter em conta é que durante as revoluções o povo é mais receptivo às idéias libertárias e anarquistas, e que é a liberdade a idéia hegemônica do momento não o autoritarismo. Alguns dos grupos estalinistas só representam o rosto mais feio do socialismo autoritário... Por exemplo, o antigo Partido Comunista da Tunísia participou com o partido dominante de Ben Ali no governo formado após a expulsão do próprio Ben Ali. Outro grupo autoritário, o Partido Comunista dos Trabalhadores da Tunísia, participou ativamente nos protestos, mas depressa manifestaram as suas contradições: quando Bem Ali escapou tratou de criar conselhos ou comitês locais para defender o processo e logo de seguida retratou-se e apelou para se criar um novo parlamento e governo. No Egito passa-se praticamente o mesmo, há grupos reformistas de esquerda, como o Partido da Unidade Progressista e alguns revolucionários da esquerda autoritária.
Não posso dizer com exatidão qual o papel dos anarquistas ou de outros libertários - há uma crescente tendência comunista conselhista junto a eles - devido à falta de comunicação com os nossos companheiros de lá, mas não posso deixar de ressaltar o que disse anteriormente: que estas revoluções foram feitas principalmente pelas próprias massas. Na Tunísia, os sindicatos mais fortes tiverem um grande papel nas últimas fases da revolta.
Quero referir um pouco mais aos comitês locais criados pelas massas, uma das manifestações mais interessantes da sua ação revolucionária. Perante a pilhagem, iniciada sobretudo pela polícia secreta, o povo criou os ditos comitês como instituições realmente democráticas, como uma competência real de oposição às instituições autoritárias… No Egito até ao dia de hoje os governos, os comitês locais e o governo de Mubarak escondiam-se atrás dos tanques e das espingardas dos seus soldados. Isto está a suceder numa região assolada por ditaduras e pelo autoritarismo... Isso é o grandioso das revoluções que transformam o mundo rapidamente. Isto não significa que a luta esteja ganha, pelo contrário, isto significa que a luta real acaba de começar.
Pergunta > Para resumir, qual o seu ponto de vista sobre os acontecimentos? O que pensa que simbolizam?
Mazen < É o começo de uma nova era, as massas estão se sublevando e a sua liberdade está em jogo, as tiranias tombam... Sem dúvida estamos a assistir ao nascimento de um mundo novo.

Fonte: ANA ( Agência de Notícias Anarquistas)

Um comentário:

Lucas disse...

Lindo trampo de vocês por aqui, estão nos favoritos. []´s!