As prisões
Numa conferência realizada em Paris em 1887, Kropotkin aborda um dos temas centrais da sociedade atual que, depois das questões econômica e política, é a mais importante: a questão judicial.
A pergunta a que ele pretende responder é: o que se deve fazer com aqueles que cometem atos anti-sociais? Condenação à morte, trabalhos forçados, prisão perpétua? A máquina judicial povoa as prisões.
No entanto – e aqui os dados de Kropotkin são do século passado [XIX], cuja semelhança com os atuais [XX] é chocante – a única certeza que a administração carcerária tem é a da reincidência no crime, pois o aumento ou a diminuição da pena não contribuem para que os índices de criminalidade decresçam.
É a partir dessa constatação que Kropotkin argumenta que nada pode ser reformado no sistema penitenciario: a prisão, ao tirar a liberdade do homem e matar a sociabilidade que o capacita a viver em sociedade, só faz fabricar o criminoso reincidente.
A pretexto de “reeducar” o criminoso, o regime carcerário de fato degrada, de várias formas, o prisioneiro. Também não se trata de vigiar os guardas ou escolher para diretores dos presídios pessoas realmentes “sérias”, pois o universo da prisão também é uma espécie de sentença para esses indivíduos.
Como as prisões demonstraram serem incapazes de resolver o problema dos crimes, para Kropotkin cabe sim buscar suas causas, e elas são de responsabilidade social: a miséria, odesemprego, a desorganização familiar. O capitalismo, que cultiva o desprezo ao trabalho manual e cultua o deus-capital, cria personalidades anti-sociais, pessoas que querem viver às custas de outras que as mantenham. Os criminosos “bem-sucedidos” são glorificados. Os que “fracassam” na “carreira” é que serão trancafiados nas prisões.
Não é à toa que a maioria dos crimes, nesta sociedade fundada na propriedade dos bens por poucos e na expropriação de muitos, são contra a propriedade.
A minoria deles, que atige a pessoa humana enquanto indivíduo, com o desenvolvimento de relações sociais fundadas na cooperação, apoio mútuo e respeito ao próximo tenderão fatalmente a decair e até mesmo a desaparecer.
As instituições presidiárias representam apenas uma solução de compromisso entre a noção bíblica de vingança, do Velho Testamento, a noção medieval de existência de uma vontade diabólica geradora do crime e a noção moderna de evitar o crime pelo castigo. Esse termo aparece transfigurado como “reeducação” ou “reintegração”, alteração filológica e não filosófica.
A pena de morte, por sua vez, é apontada por alguns como solução para a reincidência criminosa de pessoas que cometeram homicídio ou atentaram contra a propriedade privada. No entanto, quando a pena de morte, na sociedade capitalista atingiu um banqueiro, um industrial ou um financista?
Assim como o hospital psiquiátrico é um depósito de pobres, o presídio também o é. Sua função, muito longe de ser a de “reintegrar”, é a de estigmatizar. Para que tanto trabalho e custos para apenas garantir a boa consciência das várias frações da classe dominante? Do mesmo modo que a prostituição é a condição do casamento monogâmico, a existência do estigma criminal é a condição da boa consciência da burguesia e da pequena burguesia das grandes cidades.
Para Kropotkin, nem as prisões nem a pena de morte – um assassinato legal – diminuíram o número de crimes. Para ele, só o apoio humano fraterno àqueles que, por motivos os mais variados, venham a passar por um processo de desestruturação situacional, só a liberdade para que o indivíduo possa demonstrar suas potencialidades, criatividade e humanidade são remédios contra o crime.
Num mundo como o capitalista, governado pela mercadoria, onde não só o trabalho é uma delas, mas a própria personalidade humana se converte numa mercadoria, esses remédios são esmagados.
Caso haja no contingente de presidiários aqueles que possuem problemas psíquicos, nada mais certo que receberem atenção adequada dos especialistas e atenção solidária da comunidade.
Uma sociedade livre não necessita de depósitos de seres humanos segregados. A segregação é o grande crime contra a pessoa, a fonte de todas as perversões, delinqüências e deformações psíquicas.
Não é por acaso que os hospitais psiquiátricos tradicionais, que os colégios internos, conventos e prisões fechadas são incompatíveis com uma sociedade igualitária e libertária.
Infelizmente, constituem o cartão de visita de sociedades fundadas na exploração e na opressão do homem pelo homem.
Maurício Tragtenberg
Excerto extraído de TRAGTENBERG, Maurício. Apresentação do livro KROPOTKIN (textos escolhidos); L&PM Editores; 1987. Texto compilado por Everaldo Tavares.
Disponível em: http://ohomemrevoltado.blogspot.com/
Ser jovem e ser pobre em Patos de Minas: um duplo delito (breve reflexão sobre a portaria 003/2009)
No dia 11 de setembro de 2009, o Conselho Nacional de Justiça havia determinado a suspensão da portaria 003/2009, de autoria do juiz Joamar Gomes Vieira Nunes, que pertence a Vara de Infância e Juventude da Comarca de Patos de Minas. Todavia, o CNJ voltou atrás e decidiu, no dia 10 de novembro, manter a portaria em vigência. Como já havia sido mencionado nas edições anteriores do Eidos, a portaria 003/2009 institui o toque de recolher para os jovens menores de 16 anos, que, estão proibidos de circular entre as 23h e as 6h sem a companhia dos pais ou responsáveis.
Face às críticas sofridas, o juiz Joamar argumentou, paradoxalmente, que a finalidade da portaria em questão é a preservação da liberdade dos jovens bons, que vinha sendo colocada em xeque por algumas atitudes tomadas por jovens maus.
Todavia, podemos (e devemos) questionar: o que juiz Joamar entende por jovem bom e jovem mau?
Entre ditos e não ditos, ele próprio deixa escapar uma pista que pode fornecer os elementos necessários para responder essa pergunta. Por ora, acompanhemos a mesma e vejamos no que ela consiste.
De acordo com o referido jurista, o jovem bom é aquele que não rouba, não trafica ou consome drogas, não comete assassinato, enfim não comentem atos que infringem as leis. Ao passo que o jovem mau é aquele que se caracteriza, justamente, pela realização de tais práticas.Com base nisso, podemos perceber, mesmo que de forma velada, que o juiz Joamar estabelece correspondência entre a condição social dos jovens e os seus respectivos adjetivos morais. Dito de outra forma: os jovens considerados bons são os jovens ricos e os jovens considerados maus são os jovens pobres.
Diante de tal constatação nos deparamos com uma segunda pergunta, que viria, por assim dizer, substituir e atualizar a primeira: será que o juiz Joamar não se questiona por que os jovens pobres se tornaram jovens maus?
A esse propósito, o jurista supracitado não nos deu, seja de forma explícita, seja de forma implícita, nenhuma pista. Todavia, se levarmos em consideração o avanço da desigualdade social em Patos de Minas nas últimas décadas encontraremos ai um dado não negligenciável para a explicação do fenômeno vinculado a chamada “delinqüência juvenil” na cidade.
Com efeito, se analisarmos a pobreza resultante da exclusão que existe na sociedade patense, iremos nos deparar com uma triste, porém realista, constatação: existe hoje uma espécie de encurtamento de horizontes por parte destes jovens. Para estes, a única alternativa face a experiência da miséria parece ser o roubo, o tráfico ou consumo de drogas e o assassínio, ou seja, tudo que possa fazer para conseguir satisfazer suas necessidades imediatas de consumo.
Espantoso, contudo, que os diversos especialistas que participaram do processo de idealização e implementação da referida portaria não tenham atentado para tais questões e tenham ficado presos, somente, a querela de saber se essa era inconstitucional ou não.Talvez não seja tão espantoso quanto sugere, haja vista a mentalidade extremante acrítica de uma parcela expressiva da sociedade patense, que parece ter capacidade apenas para ver as conseqüências, mas, parece incapaz de ver as causas.
Por esse motivo, esconjuram o jovem infrator, porém, não se questionam porque ele existe!
Thiago Lemos Silva
Os limites do direito
Contra as escaramuças que impedem a coragem de verdade
O Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3), coloca alguns “eixos orientadores” que não devem ser negligenciados por qualquer consideração crítica dos defensores da liberdade.
Entretanto, o centro do debate político institucional se concentra na criação da “Comissão Nacional da Verdade” (Eixo Orientador VI). As discussões veiculadas pela mídia e capitaneadas pelos formadores de opinião, militares e políticos procuram agenciar um meio-termo que deixe intocável as arbitrariedades dos militares e se cozinhe, em banho-maria, a busca da verdade sobre torturas, desaparecimentos, execuções, estupros, perseguições e inomináveis condutas exercidas por ditadores e seus funcionários em nome da ordem e da segurança nacional.
Do temor à verdade
A Lei de Anistia (6.683/1979) isentava de punição os militares e todos os subversivos que não haviam sido julgados pelo tribunal militar. No Brasil, diferente do que ocorreu na Argentina e no Chile, se fez presente, mais uma vez, o jeitinho brasileiro. Tentaram apagar a história em nome de uma nova conciliação nacional. Dessa maneira, com a “abertura política” em direção à institucionalização da democracia, acomodaram-se políticos, militares, técnicos e funcionários da ditadura sob um novo cenário. Abriram-se as portas, inclusive, para que os anistiados ingressassem no jogo político legal.
Todavia, o tempo passou, mas a memória dos acontecimentos não foi apagada. Se hoje em dia no governo há muitos ex-subversivos, isso não faz da “Comissão Nacional da Verdade” um ato de revanche ou de ressentimento. Os que olham para a situação atual como o exercício renovado da punição, por meio da justiça, desejam, com isso, incinerar a parte da verdade que lhes incomoda.
A verdade é sempre uma criação histórica. Não há verdade absoluta ou parcial, somente a verdade das forças em luta. Os setores reacionários temem a simples divulgação do que fizeram, onde fizeram, com quem fizeram, como fizeram.
A continuidade do silêncio, ou dos rumores sobre o que se passou é o que eles mais desejam. Eles pretendem, com isso, refazer o jeitinho brasileiro, escondendo o seu temor à democracia reduzida ao ritual de negócios minimizador dos ressentimentos, o que é próprio da política. Do mesmo modo, recorrem ao argumento da desforra pelos adversários como um perigo à hipotética paz duradoura. O que eles não conseguem camuflar com esse argumento defensivo é quanto temem o que será revelado.
Toda criança, todo jovem, adulto e velho deve saber cada vez mais da história dos que usaram o terror de Estado para fazer valer a sua verdade e garantir a sua segurança.
Da coragem de verdade
Não está em jogo punir, mas abrir arquivos, vasculhar espaços edificados para repressão, localizar desaparecidos, explicitar as tecnologias de poder usadas na ditadura e suas covardias conexas para que uma ou mais de uma verdade apareça.
Essa arqueologia da violência exporá o solo sobre o qual a atual democracia está edificada. Só assim será possível acreditar que a democracia nos levará a um regime que potencializará a liberdade. É preciso tornar público, junto aos nomes e cadáveres de desaparecidos e dos torturados, as figuras militares e civis que se esconderam e escondem-se atrás da lei, da política ou da força.
A política é um meio hábil para provocar esquecimentos e fazer crer que homens incomuns governam os comuns em nome da nação, do povo ou do Estado. Não há política sem uma produção de verdade que lhe antecede. Não há resistências sem governo. Não há cadáver que descanse em paz: é apenas um corpo morto. Mas na memória das pessoas próximas e dos resistentes, cada humano desaparecido permanece vivo. Assim como na memória dos vivos que lutaram contra a ditadura não haverá lei, punição ou plano que a apagará. Estamos diante de uma questão relativa à ética da liberdade.
Não se trata, portanto, de uma justiça punitiva a ser reinventada. Mas de uma atitude liberadora capaz de iniciar pequenos esclarecimentos sobre práticas macabras e as confortáveis posições que os executores do terror de Estado encontraram para envelhecer com paz e segurança. Aqueles que já se tornaram cadáveres acomodados num descanso em paz serão revividos para que se saiba que a verdade depende das circunstâncias históricas; que as verdades por eles defendidas hoje estão sendo enterradas; que não há verdade absoluta ou eterna; que o exercício da punição se justifica pela morte do outro; que ninguém é inocente!
A hora e a vez
A “Comissão Nacional da Verdade” renova o anseio para se dar um fim à arqueologia da violência. Ela não deve esconder e nem revelar somente uma parte possível das verdades. Ela deve instigar em cada cidadão uma atitude antiditatorial. Explicitar os ardis do recurso à ditadura em nome da salvaguarda da democracia, como fizeram os ditadores militares e a maioria dos civis abúlicos e covardes. Mostrar que esse caminho medonho, ao pretender extirpar qualquer adversário, propicia a emergência das subversões.
Pode, também, iniciar uma prática antipunitiva que enfrente com coragem os ilegalismos próprios e incontornáveis das prisões e seus derivados como o controle punitivo a céu aberto.
Os presos políticos não aceitaram os ilegalismos da prisão fomentados por diretores, funcionários e prisioneiros. Deixaram claro que viviam uma ética de liberdade e se posicionaram contra a lei da prisão, seus julgamentos e execuções. Tiveram o sutil discernimento para constatar que todo preso é um preso político.
Trazer a público os arquivos da repressão política é expor as violências de qualquer aparato repressivo.
O debate público sobre o PNDH-3 pode ultrapassar os melindres dos militares, o simples revanchismo, o retorno do ressentimento, os efeitos eleitorais esperados, o estabelecimento da verdade histórica definitiva, o discurso articulado dos formadores de opinião pública em nome de um mesmo verdadeiro negócio chamado política.
Esta é a hora e a vez. Até quando? Não há paz onde há governo. A política prossegue como guerra prolongada por outros meios. Será a boa mão de um presidente capaz de edificar com mais solidez o jeitinho brasileiro?
Toda subversão incita a liberdade e expõe assimetrias. Quando um povo está sob regime ditatorial, a subversão é a derradeira expressão de sua saúde.
Núcleo de Sociabilidade Libertária ( Nu- Sol)
Disponível em: http://www.nu-sol.org/hypomnemata/boletim.php?idhypom=142
Numa conferência realizada em Paris em 1887, Kropotkin aborda um dos temas centrais da sociedade atual que, depois das questões econômica e política, é a mais importante: a questão judicial.
A pergunta a que ele pretende responder é: o que se deve fazer com aqueles que cometem atos anti-sociais? Condenação à morte, trabalhos forçados, prisão perpétua? A máquina judicial povoa as prisões.
No entanto – e aqui os dados de Kropotkin são do século passado [XIX], cuja semelhança com os atuais [XX] é chocante – a única certeza que a administração carcerária tem é a da reincidência no crime, pois o aumento ou a diminuição da pena não contribuem para que os índices de criminalidade decresçam.
É a partir dessa constatação que Kropotkin argumenta que nada pode ser reformado no sistema penitenciario: a prisão, ao tirar a liberdade do homem e matar a sociabilidade que o capacita a viver em sociedade, só faz fabricar o criminoso reincidente.
A pretexto de “reeducar” o criminoso, o regime carcerário de fato degrada, de várias formas, o prisioneiro. Também não se trata de vigiar os guardas ou escolher para diretores dos presídios pessoas realmentes “sérias”, pois o universo da prisão também é uma espécie de sentença para esses indivíduos.
Como as prisões demonstraram serem incapazes de resolver o problema dos crimes, para Kropotkin cabe sim buscar suas causas, e elas são de responsabilidade social: a miséria, odesemprego, a desorganização familiar. O capitalismo, que cultiva o desprezo ao trabalho manual e cultua o deus-capital, cria personalidades anti-sociais, pessoas que querem viver às custas de outras que as mantenham. Os criminosos “bem-sucedidos” são glorificados. Os que “fracassam” na “carreira” é que serão trancafiados nas prisões.
Não é à toa que a maioria dos crimes, nesta sociedade fundada na propriedade dos bens por poucos e na expropriação de muitos, são contra a propriedade.
A minoria deles, que atige a pessoa humana enquanto indivíduo, com o desenvolvimento de relações sociais fundadas na cooperação, apoio mútuo e respeito ao próximo tenderão fatalmente a decair e até mesmo a desaparecer.
As instituições presidiárias representam apenas uma solução de compromisso entre a noção bíblica de vingança, do Velho Testamento, a noção medieval de existência de uma vontade diabólica geradora do crime e a noção moderna de evitar o crime pelo castigo. Esse termo aparece transfigurado como “reeducação” ou “reintegração”, alteração filológica e não filosófica.
A pena de morte, por sua vez, é apontada por alguns como solução para a reincidência criminosa de pessoas que cometeram homicídio ou atentaram contra a propriedade privada. No entanto, quando a pena de morte, na sociedade capitalista atingiu um banqueiro, um industrial ou um financista?
Assim como o hospital psiquiátrico é um depósito de pobres, o presídio também o é. Sua função, muito longe de ser a de “reintegrar”, é a de estigmatizar. Para que tanto trabalho e custos para apenas garantir a boa consciência das várias frações da classe dominante? Do mesmo modo que a prostituição é a condição do casamento monogâmico, a existência do estigma criminal é a condição da boa consciência da burguesia e da pequena burguesia das grandes cidades.
Para Kropotkin, nem as prisões nem a pena de morte – um assassinato legal – diminuíram o número de crimes. Para ele, só o apoio humano fraterno àqueles que, por motivos os mais variados, venham a passar por um processo de desestruturação situacional, só a liberdade para que o indivíduo possa demonstrar suas potencialidades, criatividade e humanidade são remédios contra o crime.
Num mundo como o capitalista, governado pela mercadoria, onde não só o trabalho é uma delas, mas a própria personalidade humana se converte numa mercadoria, esses remédios são esmagados.
Caso haja no contingente de presidiários aqueles que possuem problemas psíquicos, nada mais certo que receberem atenção adequada dos especialistas e atenção solidária da comunidade.
Uma sociedade livre não necessita de depósitos de seres humanos segregados. A segregação é o grande crime contra a pessoa, a fonte de todas as perversões, delinqüências e deformações psíquicas.
Não é por acaso que os hospitais psiquiátricos tradicionais, que os colégios internos, conventos e prisões fechadas são incompatíveis com uma sociedade igualitária e libertária.
Infelizmente, constituem o cartão de visita de sociedades fundadas na exploração e na opressão do homem pelo homem.
Maurício Tragtenberg
Excerto extraído de TRAGTENBERG, Maurício. Apresentação do livro KROPOTKIN (textos escolhidos); L&PM Editores; 1987. Texto compilado por Everaldo Tavares.
Disponível em: http://ohomemrevoltado.blogspot.com/
Ser jovem e ser pobre em Patos de Minas: um duplo delito (breve reflexão sobre a portaria 003/2009)
No dia 11 de setembro de 2009, o Conselho Nacional de Justiça havia determinado a suspensão da portaria 003/2009, de autoria do juiz Joamar Gomes Vieira Nunes, que pertence a Vara de Infância e Juventude da Comarca de Patos de Minas. Todavia, o CNJ voltou atrás e decidiu, no dia 10 de novembro, manter a portaria em vigência. Como já havia sido mencionado nas edições anteriores do Eidos, a portaria 003/2009 institui o toque de recolher para os jovens menores de 16 anos, que, estão proibidos de circular entre as 23h e as 6h sem a companhia dos pais ou responsáveis.
Face às críticas sofridas, o juiz Joamar argumentou, paradoxalmente, que a finalidade da portaria em questão é a preservação da liberdade dos jovens bons, que vinha sendo colocada em xeque por algumas atitudes tomadas por jovens maus.
Todavia, podemos (e devemos) questionar: o que juiz Joamar entende por jovem bom e jovem mau?
Entre ditos e não ditos, ele próprio deixa escapar uma pista que pode fornecer os elementos necessários para responder essa pergunta. Por ora, acompanhemos a mesma e vejamos no que ela consiste.
De acordo com o referido jurista, o jovem bom é aquele que não rouba, não trafica ou consome drogas, não comete assassinato, enfim não comentem atos que infringem as leis. Ao passo que o jovem mau é aquele que se caracteriza, justamente, pela realização de tais práticas.Com base nisso, podemos perceber, mesmo que de forma velada, que o juiz Joamar estabelece correspondência entre a condição social dos jovens e os seus respectivos adjetivos morais. Dito de outra forma: os jovens considerados bons são os jovens ricos e os jovens considerados maus são os jovens pobres.
Diante de tal constatação nos deparamos com uma segunda pergunta, que viria, por assim dizer, substituir e atualizar a primeira: será que o juiz Joamar não se questiona por que os jovens pobres se tornaram jovens maus?
A esse propósito, o jurista supracitado não nos deu, seja de forma explícita, seja de forma implícita, nenhuma pista. Todavia, se levarmos em consideração o avanço da desigualdade social em Patos de Minas nas últimas décadas encontraremos ai um dado não negligenciável para a explicação do fenômeno vinculado a chamada “delinqüência juvenil” na cidade.
Com efeito, se analisarmos a pobreza resultante da exclusão que existe na sociedade patense, iremos nos deparar com uma triste, porém realista, constatação: existe hoje uma espécie de encurtamento de horizontes por parte destes jovens. Para estes, a única alternativa face a experiência da miséria parece ser o roubo, o tráfico ou consumo de drogas e o assassínio, ou seja, tudo que possa fazer para conseguir satisfazer suas necessidades imediatas de consumo.
Espantoso, contudo, que os diversos especialistas que participaram do processo de idealização e implementação da referida portaria não tenham atentado para tais questões e tenham ficado presos, somente, a querela de saber se essa era inconstitucional ou não.Talvez não seja tão espantoso quanto sugere, haja vista a mentalidade extremante acrítica de uma parcela expressiva da sociedade patense, que parece ter capacidade apenas para ver as conseqüências, mas, parece incapaz de ver as causas.
Por esse motivo, esconjuram o jovem infrator, porém, não se questionam porque ele existe!
Thiago Lemos Silva
Os limites do direito
Contra as escaramuças que impedem a coragem de verdade
O Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3), coloca alguns “eixos orientadores” que não devem ser negligenciados por qualquer consideração crítica dos defensores da liberdade.
Entretanto, o centro do debate político institucional se concentra na criação da “Comissão Nacional da Verdade” (Eixo Orientador VI). As discussões veiculadas pela mídia e capitaneadas pelos formadores de opinião, militares e políticos procuram agenciar um meio-termo que deixe intocável as arbitrariedades dos militares e se cozinhe, em banho-maria, a busca da verdade sobre torturas, desaparecimentos, execuções, estupros, perseguições e inomináveis condutas exercidas por ditadores e seus funcionários em nome da ordem e da segurança nacional.
Do temor à verdade
A Lei de Anistia (6.683/1979) isentava de punição os militares e todos os subversivos que não haviam sido julgados pelo tribunal militar. No Brasil, diferente do que ocorreu na Argentina e no Chile, se fez presente, mais uma vez, o jeitinho brasileiro. Tentaram apagar a história em nome de uma nova conciliação nacional. Dessa maneira, com a “abertura política” em direção à institucionalização da democracia, acomodaram-se políticos, militares, técnicos e funcionários da ditadura sob um novo cenário. Abriram-se as portas, inclusive, para que os anistiados ingressassem no jogo político legal.
Todavia, o tempo passou, mas a memória dos acontecimentos não foi apagada. Se hoje em dia no governo há muitos ex-subversivos, isso não faz da “Comissão Nacional da Verdade” um ato de revanche ou de ressentimento. Os que olham para a situação atual como o exercício renovado da punição, por meio da justiça, desejam, com isso, incinerar a parte da verdade que lhes incomoda.
A verdade é sempre uma criação histórica. Não há verdade absoluta ou parcial, somente a verdade das forças em luta. Os setores reacionários temem a simples divulgação do que fizeram, onde fizeram, com quem fizeram, como fizeram.
A continuidade do silêncio, ou dos rumores sobre o que se passou é o que eles mais desejam. Eles pretendem, com isso, refazer o jeitinho brasileiro, escondendo o seu temor à democracia reduzida ao ritual de negócios minimizador dos ressentimentos, o que é próprio da política. Do mesmo modo, recorrem ao argumento da desforra pelos adversários como um perigo à hipotética paz duradoura. O que eles não conseguem camuflar com esse argumento defensivo é quanto temem o que será revelado.
Toda criança, todo jovem, adulto e velho deve saber cada vez mais da história dos que usaram o terror de Estado para fazer valer a sua verdade e garantir a sua segurança.
Da coragem de verdade
Não está em jogo punir, mas abrir arquivos, vasculhar espaços edificados para repressão, localizar desaparecidos, explicitar as tecnologias de poder usadas na ditadura e suas covardias conexas para que uma ou mais de uma verdade apareça.
Essa arqueologia da violência exporá o solo sobre o qual a atual democracia está edificada. Só assim será possível acreditar que a democracia nos levará a um regime que potencializará a liberdade. É preciso tornar público, junto aos nomes e cadáveres de desaparecidos e dos torturados, as figuras militares e civis que se esconderam e escondem-se atrás da lei, da política ou da força.
A política é um meio hábil para provocar esquecimentos e fazer crer que homens incomuns governam os comuns em nome da nação, do povo ou do Estado. Não há política sem uma produção de verdade que lhe antecede. Não há resistências sem governo. Não há cadáver que descanse em paz: é apenas um corpo morto. Mas na memória das pessoas próximas e dos resistentes, cada humano desaparecido permanece vivo. Assim como na memória dos vivos que lutaram contra a ditadura não haverá lei, punição ou plano que a apagará. Estamos diante de uma questão relativa à ética da liberdade.
Não se trata, portanto, de uma justiça punitiva a ser reinventada. Mas de uma atitude liberadora capaz de iniciar pequenos esclarecimentos sobre práticas macabras e as confortáveis posições que os executores do terror de Estado encontraram para envelhecer com paz e segurança. Aqueles que já se tornaram cadáveres acomodados num descanso em paz serão revividos para que se saiba que a verdade depende das circunstâncias históricas; que as verdades por eles defendidas hoje estão sendo enterradas; que não há verdade absoluta ou eterna; que o exercício da punição se justifica pela morte do outro; que ninguém é inocente!
A hora e a vez
A “Comissão Nacional da Verdade” renova o anseio para se dar um fim à arqueologia da violência. Ela não deve esconder e nem revelar somente uma parte possível das verdades. Ela deve instigar em cada cidadão uma atitude antiditatorial. Explicitar os ardis do recurso à ditadura em nome da salvaguarda da democracia, como fizeram os ditadores militares e a maioria dos civis abúlicos e covardes. Mostrar que esse caminho medonho, ao pretender extirpar qualquer adversário, propicia a emergência das subversões.
Pode, também, iniciar uma prática antipunitiva que enfrente com coragem os ilegalismos próprios e incontornáveis das prisões e seus derivados como o controle punitivo a céu aberto.
Os presos políticos não aceitaram os ilegalismos da prisão fomentados por diretores, funcionários e prisioneiros. Deixaram claro que viviam uma ética de liberdade e se posicionaram contra a lei da prisão, seus julgamentos e execuções. Tiveram o sutil discernimento para constatar que todo preso é um preso político.
Trazer a público os arquivos da repressão política é expor as violências de qualquer aparato repressivo.
O debate público sobre o PNDH-3 pode ultrapassar os melindres dos militares, o simples revanchismo, o retorno do ressentimento, os efeitos eleitorais esperados, o estabelecimento da verdade histórica definitiva, o discurso articulado dos formadores de opinião pública em nome de um mesmo verdadeiro negócio chamado política.
Esta é a hora e a vez. Até quando? Não há paz onde há governo. A política prossegue como guerra prolongada por outros meios. Será a boa mão de um presidente capaz de edificar com mais solidez o jeitinho brasileiro?
Toda subversão incita a liberdade e expõe assimetrias. Quando um povo está sob regime ditatorial, a subversão é a derradeira expressão de sua saúde.
Núcleo de Sociabilidade Libertária ( Nu- Sol)
Disponível em: http://www.nu-sol.org/hypomnemata/boletim.php?idhypom=142
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