domingo, 28 de novembro de 2010

EIDOS INFO-ZINE # 27




EDITORIAL

Caros Amigos,

No artigo que abre esta nova edição do Eidos info-zine, Christina Roquette Lopreato reflete sobre “ O (des) encontro do Brasil consigo mesmo” a partir dos “ ditos e escritos de Edgard Leuenroth". No referido artigo, do qual publicamos a primeira parte, a historiadora procura refletir sobre a singularidade da análise de Leuenroth em seus manuscritos “Qual a solução para o problema do Brasil?”, na qual ele apresenta, ao mesmo tempo, os problemas que impedem o país de encontrar a si mesmo e a sua proposta de ruptura com o sistema capitalista, que embasa o seu projeto de radical remodelação da sociedade brasileira segundo o socialismo libertário.
Em “Eu, ator e anarquista”, Chico Cuberos, que faleceu recentemente, nos apresenta parte do seu trajeto político, mostrando como que, através teatro libertário, chegou até ao anarquismo.Com a publicação deste artigo, nós do Eidos procuramos fazer uma pequena homenagem a este grande homem.
Inaugurando a nossa seção de charges, o cartunista brasileiro Carlos Latuff apresenta o seu trabalho para explicitar o caso da criminalização do movimento estudantil na UFU e as arbitrariedades contra o princípio democrático que vem sendo marca da administração do atual reitor.
           O artigo de Emma Goldman, “A anarquia e a questão sexual”, procura mostrar que um programa, verdadeiramente, anarquista deve pregar não somente a liberdade econômica e política, mas também, e principalmente, a liberdade sexual.
Nas suas notas de leitura  de “Pânico e desamparo na atualidade”, Fernanda Caroline de Melo Rodrigues traz a sua interpretação do artigo de Lucianne de Menezes, destinado a discutir a possível contribuição de Freud para a compreensão da síndrome do pânico.


CONTATOS


Fernanda Caroline de Melo Rodrigues: fernandaanarquista@yahoo.com.br
Thiago Lemos Silva: thiagobakunin@yahoo.com.br

SUMÁRIO

ARTIGOS
O (des)encontro do Brasil consigo mesmo: ditos e escritos de Edgard Leuenroth. [Parte I ]: Christina Roquette Lopreato

HOMENAGENS
Eu, Ator E Anarquista: Chico Cuberos


CHARGES
Reitor da UFU: Carlos Latuff


TRADUÇÕES
Anarquia e a questão do sexo: Emma Goldman

NOTAS DE LEITURA
Pânico e desamparo na atualidade: Fernanda Caroline de Melo Rodrigues

 

ARTIGOS

O (des)encontro do Brasil consigo mesmo: ditos e escritos de EdgardLeuenroth. [ Parte I ]*

Sobre Edgard Leuenroth

Edgard Frederico Brito Leuenroth, personagem importante da história do(s) anarquismo(s) do Brasil, nasceu no interior de São Paulo, em Mogi-Mirim, em 31 de outubro de 1881, quando o Brasil ainda vivia sob o regime monárquico e escravocrata. Ainda jovem, flertou com o republicanismo que dava seus primeiros passos no país, mas, em pouco tempo, se desencantou com os descaminhos da República em terras brasileiras. Em 1904, iniciou sua trajetória de militância libertária interrompida somente quando, em idade avançada, suas forças físicas de octogenário não mais lhe permitiram agitar a bandeira anarquista.
Ainda jovem, vivenciou a passagem do século XIX/XX como “fazedor de jornais”.Sua inserção na lida jornalística foi precoce. Aos 15 anos, começou a trabalhar nojornal Comércio de São Paulo como tirador de provas e mais tarde como tipógrafo.A passagem por este jornal ficou assim registrada em seus manuscritos autobiográficos[1] “Nunca tive estudos regulares. Aprendi comigo. Sou autodidata. Tudo colhi na universidade da vida. O jornal O Comércio de São Paulo foi um verdadeiro escrínio de intelectuais. Pode ajuíza-lo acerca desta assertiva por esta equipe que lá encontrei, secundada por outras, no decorrer dos anos. Eduardo Prado (diretor), Afonso Arinos (redator chefe)... Tive ali, de certo modo, o prolongamento do curso escolar, inopinadamente truncado. Nos intervalos da seqüência das provas a tirar, punha-se à porta da redação e a ouvir, o mesmo fazendo junto à revisão e, ainda, sondando as tertúlias da improvisada sala de estar”.
Leuenroth se fez jornalista. Autodidata, com 16 anos incompletos fundou, em 1897, seu próprio jornal, O Boi, publicação quinzenal que circulava no bairro do Brás, em São Paulo. Desde jovem, defendeu a imprensa livre e, ao longo de sua trajetória de jornalista engajado, lutou aguerridamente pela liberdade de expressão e pelo livre-pensamento. Inspirado em Victor Hugo, publicou, na primeira página do seu primeiro jornal, na edição de 12 de setembro de 1897, as inquietações do escritor com a censura que rondava os jornais na França: “A imprensa é a voz do mundo. Onde há luz está a providencia. Quem reprime o pensamento attenta contra o homem. Falar, escrever, imprimir e publicar... são círculos sucessivos à intelligencia activa: são essas as ondas sonoras do pensamento ... Onde a imprensa livre é interceptada, pode dizer que a nutrição do gênero humano está interrompida. A missão do nosso tempo é mudar os velhos fundamentos da sociedade, crear a verdadeira ordem e collocar em toda a parte a realidade no logar das ficções. Nesta deslocação das bases sociaes, que é o trabalho colossal do século – nada resiste à imprensa. ... A imprensa... escrava! A reunião de palavras, impossível !. Não, por mais que façam os déspotas, não, não há escravidão para o espírito”.[2]
             Ainda adolescente, já tinha clareza da importância da liberdade de expressão e da força da imprensa livre como meio propulsor de idéias progressistas. Por acreditar não haver escravidão para o espírito que se quer livre, escreveu e falou sem peias, arcando com as conseqüências da sua ousadia. E foi principalmente nas atividades desenvolvidas nos jornais que teve contato com diferentes correntes do pensamento e abraçou o anarquismo. O seu engajamento na imprensa anarquista ocorreu em 1905 como co-fundador, administrador e redator do jornal Terra Livre, dirigido por Neno Vasco, e publicado em São Paulo (SP). Antes disso, em 1903, foi introduzido por Estevão Estrela nas idéias socialistas filiando-se ao Círculo Socialista Primeiro de Maio. No ano seguinte, entrou em contato com as idéias anarquistas e, desde então, foi defensor incansável dos ideais libertários até sua morte, em 28 de setembro de 1968.
Com a imprensa estabeleceu um vínculo estreito que se estendeu até seus últimos dias. Fez do jornalismo não só uma profissão, mas principalmente um meio de militância. Foi fundador, diretor, redator, administrador e colaborador de vários periódicos. E também “sempre gostou de reunir, colecionar e organizar informações sobre aimprensa. Organizou e dirigiu os arquivos de A Noite (edição paulista), Jornal de São Paulo (em suas duas fases), A Época, Jornal do Comércio (Recife) e trabalhou na renovação dos arquivos Folha da Manhã e O Globo (Rio de Janeiro)”.[3]
Leuenroth cultivou o “pendor vocacional” (palavras suas) de arquivista. Com essa sua “mania” de guardar papéis, ele acumulou um rico acervo de documentos sobre a história do(s) anarquismo(s) no Brasil, de um modo geral (panfletos, material de propaganda, fotografias, entre outos), e, em especial, da imprensa anarquista (coleções de jornais libertários, material de edição, de controle da confecção e distribuição dos jornais que ele dirigiu, colaborou, foi redator ou editor resposável). Como arquivista (ele assim se autodenominava) deixou como legado uma documentação extraordinária. Uma parte dela, comprada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), deu origem ao Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) e encontra-se disponível para consulta. Uma outra parte está sob a guarda do Círculo Alfa de Estudos Históricos, cujo responsável, Parmênides Cuberos, sobrinho de Jaime Cubero, companheiro de militância de Leuenroth, me permitiu acesso a uma documentação ainda inexplorada. E é sobre esta documentação preciosa, constituída de textos manuscritos e de textos datilografados ainda desconhecidos dos pesquisadores, que atualmente estou debruçada.
Edgard foi militante ativo nas manifestações populares ocorridas em São Paulo, nas duas primeiras décadas do século XX e teve participação decisiva na greve geral de 1917 como incentivador, organizador e orientador das jornadas libertárias de Julho de 1917. Orador vibrante, foi presença constante nos comícios e agitações públicas que ocorreram durante o primeiro semestre de 1917, momento de preparação da greve geral. No calor das primeiras manifestações grevistas, fundou, em 9 de junho, A Plebe, jornal libertário porta-voz das reivindicações operárias no ano de 1917. Também teve papel de destaque como membro do Comitê de Defesa Proletária (CDP) nas negociações junto aos patrões e industriais que levaram à suspensão da greve geral.
Pelo seu engajamento no movimento grevista foi preso em setembro de 1917 e processado5 como “mentor psico-intelectual” do assalto ao Moinho Santista, ocorrido durante as agitações operárias. Durante os seis meses em que ficou encarcerado, sob acusação de ter cometido um crime de multidão, preparou sua auto-defesa na qual afirmou ter sido preso e processado por defender idéias libertárias. E com o mesmo espírito de livre-pensador e de assumir a responsabilidade por suas ações, rebateu as acusações que sofreu em outros processos que lhe valeram, durante sua trajetória de militância, passagens sofridas pelos cárceres. Quando da sua prisão no ano de 1935, reafirmou, na sua auto-defesa, ter “... muito respeito à minha pessoa para fugir às responsabilidades de minhas atitudes sempre tomadas conscientemente... Antes de tudo, sabem todos os que me conhecem que jamais neguei meus atos. As minhas ações são sempre oriundas de bem pensadas resoluções de minha consciência guiada por um inabalável senso de responsabilidade”[5]
E pela acusação de ser o responsável pela publicação do jornal anti-clerical A Lanterna, no ano de 1935, respondeu com firmeza: “É verdade... Se resolvi publicar A Lanterna foi porque julgava necessária aos interesses dos brasileiros, bem como da coletividade humana, a obra justificava a existência desse jornal. Portanto, porque negar? Errados ou certos os princípios sustentados pela Lanterna? Essa é uma outra questão que não cabe no âmbito do processo em que me envolveram. É uma questão de convicção, de imperativo de consciência, de foro íntimo. Defendia uma causa que reputava útil à coletividade. Estava em erro? Pois que me convençam disso. Prender-me e processar-me por defender idéias? Ahi é que está o erro...” [6]
Leuenroth usou a pena e a voz em defesa dos ideais anarquistas e assumiu os riscos das suas intrépidas decisões. Engajou-se nas campanhas contra a carestia de vida, contra a guerra e o militarismo, contra o integralismo, entre outras. Incentivou gerações a lutar por um mundo melhor para a humanidade e atravessou o século XX defendendo a paz entre os homens em guerra, em especial durante os dois conflitos que abalaram o mundo. Fez da objeção de consciência seu imperativo moral por acreditar ser ela que dá dignidade ao homem.
Ao longo da sua trajetória de militância política-intelectual, interessou-se pelos problemas sociais que afligiam a população brasileira de um modo geral e, em particular, o operariado, e refletiu sobre as suas causas e possíveis soluções. Foi um livre-pensador que procurou explicar o Brasil, seus contrastes, suas misérias e grandezas, e acreditou na via libertária para resolver os problemas do país. Jaime Cubero, seu companheiro de afinidades afetivas e libertárias por mais de meio século, com quem tive o privilégio de conviver, contou que Leuenroth, pouco antes de falecer aos 86 anos, estava rodeado de papéis. Eram os manuscritos de um projeto libertário para a sociedade brasileira, possivelmente escrito durante os anos 60 do século passado, momento conturbado do país, em especial quando da instalação do regime militar no Brasil, em 1964.
Neste ensaio, compartilho minhas descobertas sobre ditos e escritos de Edgard Leuenroth, em especial os manuscritos ainda inéditos, em que ele refletiu sobre o desencontro do Brasil consigo mesmo e apresentou sua proposta libertária (em fazimento) para acabar em definitivo com as mazelas da sociedade brasileira.

Sobre o lidar com os manuscritos

A obra inacabada de Leuenroth tem como título Qual a solução para o problema do Brasil? De forma interrogativa, ele se pergunta se há solução para os problemas que afligem o Brasil e sai em busca de uma proposta libertária para responder a sua inquietação. A documentação a que tive acesso é constituída de mais de uma versão de textos manuscritos e de textos datilografados com rasuras, emendas, anotações, inclusões, exclusões, enfim, um prototexto, isto é, um texto mas que ainda não é o texto. Diante das intervenções de Edgard nos seus escritos, busquei desvendar o segredo da sua elaboração. Por se tratar de uma obra em andamento, para lidar com as diferentes versões de um mesmo texto recorri à crítica genética, um campo relativamente novo de investigação que se dedica ao estudo dos manuscritos literários. A partir dos rastros, busca-se compreender o percurso criativo de um autor em direção a uma obra que ainda não é, que sofre transformação progressiva, que é mutável. O esforço é procurar entender o processo de criação, a gestação da obra, aventurar-se pelos meandros do seu fazer, pelos bastidores da criação.
Assim como o crítico genético, procurei trazer de volta ao fluxo da vida um objeto parado no tempo: os manuscritos de Leuenroth, preservados e conservados pelos companheiros de militância e imobilizados num arquivo particular. Ao retirar os textos armazenados num arquivo e revitalizar o fluxo da narrativa em construção por Edgard, procurei acompanhar os passos da composição da sua obra para estabelecer os possíveis nexos entre os vestígios deixados por Leuenroth, autor e leitor crítico de sua própria obra, marcada por intervenções como acréscimos, cortes, substituições, anotações, etc.
Como um voyeur, fui adentrando o espaço privado da criação de Leuenroth. Procurei acompanhar as variações da sua escritura, o movimento da sua mão na construção do texto, mão que fez escolhas, que eliminou e acrescentou, introduziu rasuras. Busquei elucidar o caminho trilhado pelo autor e me deparei com a complexidade da metamorfose que envolve um texto em construção, o documento em processo, mediado pelo olhar do pesquisador. Uma obra no seu vir-a-ser, que ainda não é, em constante transformação.
Nesse percurso criativo, o escritor tem uma relação consigo mesmo como primeiro leitor do seu próprio texto. Ele escreve e se lê, se autocomenta, corrige, modifica, reescreve e enriquece o texto. Na aventura de compreender os documentos do processo de criação, meu interesse se voltou para o entendimento da mudança das formas, ou seja, das modificações introduzidas nas diferentes versões dos fragmentos de uma obra incompleta. Ao trilhar o caminho da composição da obra, uma outra questão surgiu: como dar unidade ao conjunto dos documentos encontrados, fragmentos de manuscritos com versões datilografadas e de textos datilografados sem a versão manuscrita? Os estudos da crítica genética[7] me levaram às reflexões do cineasta russo Serguei Eisenstein sobre a idéia de montagem, ou seja, como juntar os fragmentos recolhidos com o objetivo de dar lhes uma unidade orgânica, de encontrar o tema que atravessa o conjunto da obra, isto é, o seu princípio unificador que subjaz na idéia de montagem fílmica, desenvolvida por Eisenstein em seus livros Reflexões de um cineasta e O sentido do filme.
A leitura dos livros de Eisenstein foram inspiradores para pensar a montagem da obra de Leuenroth a partir dos fragmentos recolhidos. Na percepção do cineasta, a montagem como um princípio unificador ultrapassa os limites das simples junção de fragmentos. Nela, os elementos que a compõem deixam de existir como coisa independente e cada parte se liga uma à outra revelando um único tema de conjunto que atravessa toda a obra. A montagem consiste em ligar cada parte na outra e assim compor o conjunto, a arquitetura da obra, que deverá despertar no espectador um sentimento apaixonante. Os fragmentos formam um todo orgânico quando o tema, a idéia-chave e a composição se encontram ligados orgânica e indissoluvelmente ao pensamento, à vida e ao ser do seu autor. No processo de criação, Eisenstein observa que a intuição do autor e sua sensibilidade estão absorvidos na sua obra, pela qual se busca construir uma imagem emotiva para sensibilizar o espectador-leitor.
Na montagem da obra inacabada de Leuenroth, procurei respeitar a organização original dos fragmentos tal como eles foram encontrados, mas não há como negar que ela é também fruto da intervenção objetiva e subjetiva da pesquisadora. O livro Qual a solução para o problema do Brasil? digitalizado contém 48 páginas e está dividido em 6 partes: 1) Panorama atual da realidade brasileira; 2) O Brasil na atual conjuntura mundial; 3) Como enfrentar, no Brasil, a situação do momento?; 4) A situação exige uma reforma social; 5) Transformação socialista da sociedade brasileira e 6) Bases fundamentais da sociedade socialista brasileira. Nessa obra em fazimento, quando “a morte que chega sempre pontualmente na hora incerta”, como diz o poeta Mario Quintana, o impediu de terminar, Leuenroth, com a sensibilidade de anarquista octogenário que ainda teimava em pelejar pela causa libertária, mesmo com a saúde já bastante abalada, se volta não para lamentar os desatinos do Brasil, mas em apontar um outro caminho para recriar um novo país.

Christina Roquette Lopreato Doutora em História Social. Dedica-se ao estudo do anarquismo no Brasil. Professora da Universidade Federal de Uberlândia, Instituto de História, Campus Santa Mônica, Uberlândia, Minas Gerais.
Notas:
 *Artigo disponível em: http://www.nu-sol.org/agora/pdf/christinalopreatto.pdf. A segunda parte do artigo será publicada na próxima edição do Eidos.

[1]Leuenroth, Edgard. Dados autobiográficos. Manuscrito, s/d.

[2]Hugo, Victor. “A imprensa”. O Boi. São Paulo, 12 de setembro de 1897, anno I, no.5. p.1.

[3]Dados extraídos das anotações de Edgard Leuenroth, no manuscrito (s/d) intitulado Ficha de identidade.

[4]Sobre o processo-crime envolvendo Edgard Leuenroth pela sua participação no movimento grevista de 1917 consultar. Lopreato, Christina da Silva Roquette. O processo Edgard Leuenroth, em O espírito da revolta: a greve anarquista de 1917. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2000, p. 187-197.

[5]Leuenroth, Edgard. Auto-defesa. Mimeografado, 1935.

[6]Leuenroth, Edgard. Auto-defesa. Mimeografado, 1935.

[7] Obras consultadas: Salles, Cecília Almeida. Crítica genética: uma (nova) introdução. São Paulo:EDUC, 2000 e Wilemart, Phillippe. Universo da criação literária: crítica genética, crítica pós-moderna. São Paulo:
EDUC, 1993.


HOMENAGENS

Eu, Ator E Anarquista

Através do teatro libertário, cheguei ao anarquismo. Ao tanger, compreender e sentir a mais elevada concepção de vida social e humana que as utopias projetaram, compreendi e senti quão nobre, generosa e emancipadora é a missão do ator.
Todas as injustiças, todas as misérias da sociedade em que vivemos com seus privilégios e ambições de poder, todas as paixões que emergem da intensa gama de contradições que refletem o comportamento e a psicologia humana, desfilam pelos textos representados no teatro. Esta complexa realidade é assumida pelo ator que, através de suas personagens e de suas interpretações, passa para o público mensagem que pode ser transformadora quando desperta uma centelha de revolta, que consola quando transmite um sentimento de solidariedade, de esperança e de bondade, que pode provocar o riso e a alegria mas que terá sempre uma perspectiva política.
Para mim o teatro tem uma essência libertária e o ator, mesmo sem uma adesão racional é, em certo sentido, anarquista. O ator tem que compreender e sentir a realidade em que vive e será mais livre, na medida em que suas decisões forem pessoais. Isso dependerá de seu desenvolvimento intelectual e afetivo e do fortalecimento de sua vontade, será o resultado de todo um processo educativo, político, físico, intelectual, afetivo e volitivo. Sua liberdade é relativizada pela convivência e interação com os outros. Ser livre não é fazer tudo o que se quer, mas querer tudo o que se faz.
Ao adotar um padrão de valores onde todos os interesses se subordinam a princípios éticos e a liberdade fundamental, a solidariedade, constituindo-se em premissa básica para o desenvolvimento do potencial criativo do ser humano (um dos aspectos mais gratificantes da vida), me posiciono contra as instituições opressoras. Sou contra o Estado e os organismos que o sustentam com todas as suas imposições: o voto obrigatório, o serviço militar obrigatório e as mil sujeições obrigatórias. Sou contra todas as castrações, limitações e restrições que anulam a personalidade humana. Como anarquista, sou contra os organismos que sustentam e reproduzem um sistema de exploração e opressão do homem: partidos políticos, com a imbecilidade caricata de seus profissionais; instituições militares, policiais, judiciais, educacionais e religiosas a serviço de um sistema que corrompe e ofende a dignidade humana. Como ator, penso no teatro como um agente de transformação e não reprodutor de uma sociedade dirigida contra as mais legítimas aspirações do homem. Penso na mensagem poderosa que o teatro sempre transmitiu, na consciência crítica que o forma, através da história, desde a Grécia até a modernidade. Penso em Ésquilo, Sófocles e Eurípedes; Shakespeare, Moliére e Ibsen; Tchekhov, Brecht, Lorca e tantos outros que refletiram os conflitos humanos de suas épocas, com tragédias, dramas, comédias, mas também transmitiram o universal da existência humana. O ator foi sempre o porta-voz da mensagem, dando significado a seu texto, na medida da consciência de sua realidade e de sua perspectiva futura.
Para mim, ator e anarquista, a maior gratificação, a grande recompensa de cada instante de minha existência é o júbilo que a busca permanente das possibilidades humanas proporciona. A limpidez da alma na busca da superação, transmitindo o otimismo de um peregrino do ideal, de um militante da alegria, contente de viver, de estar no meio da procela, porque ainda há muito amor entre os homens.

Chico Cuberos  (1924-2010), anarquista brasileiro.


CHARGES

Reitor da UFU



















Carlos Latuff é cartunista brasileiro


TRADUÇÕES

ANARQUIA E A QUESTÃO DO SEXO*

Os trabalhadores cujos pálidos e débeis rebentos dos ricos tanto admiram devido a força e os músculos, mas que cujo trabalho mal lhes traz o bastante para manter porta afora o lobo da fome, casam-se somente para se empossar de uma esposa e de uma dona-de-casa que lhes deverá servir de manhã à noite, que deverá fazer todo o esforço para suavizar-lhe as despesas. Seus nervos, tão cansados pelo contínuo esforço de fazer com que o salário de fome do marido sustente a ambos, irritam-se ao ponto de não ser mais bem-sucedida em conciliar sua vontade de afeição por seu senhor e mestre, que, ai! chega ele mesmo também a conclusão de que suas esperanças e planos esvaíram-se, e então praticamente começam a pensar que o casamento é um fracasso.

As Correntes Ficam Mais e Mais Pesadas

Como as despesas ao invés de diminuírem, apenas aumentam, a esposa que perdeu toda a pouca força que tinha ao casar-se, se sente também traída, e o constante desgaste e o temor da fome consomem sua beleza num curto período após o casamento. Desanima-se, despreza os deveres familiares e como não existem laços de amor e simpatia entre ela e o marido que lhes dê força para encarar a miséria e a pobreza de suas vidas, ao invés de se apegarem um ao outro, vão se tornando cada vez mais e mais estranhados, mais e mais impacientes com as faltas um do outro.
Os homens comuns não podem ir aos clubes, como os milionários, mas vão aos bares tentar afogar sua miséria num copo de whisky, ou cerveja. Sua infeliz parceira de miséria, que é honesta demais para buscar esquecimento nos braços de um amante, e pobre demais para permitir-se qualquer recreação ou divertimento legítimo, permanece em meio à imundície daquilo que chama de lar, lamentando amargamente a loucura que fez dela a esposa de um homem pobre. E, contudo, não há meios de se separarem um do outro.

Mas Eles Devem Calçá-la

Por mais pungente que seja, entretanto, a corrente posta em torno de seus pescoços pela lei e pela Igreja, ela não se quebrará a menos que estas duas pessoas decidam permitir que isso seja asseverado.
Caso a lei fosse o bastante misericordiosa para garantir-lhes tal liberdade, todos os detalhes de suas vidas privadas teriam de ser arrastados à luz. As mulheres condenadas pela opinião pública têm sua vida inteira arruinada. O medo dessa desgraça causa amiúde a derrocada ante o peso pesado da vida conjugal, sem que ela nem sequer ouse um único protesto contra o ultrajante sistema que esmaga a si e tantas outras de suas irmãs.
Os ricos suportam para evitar o escândalo – os pobres por amor às crianças e temor a opinião pública. Suas vidas são uma longa continuidade de hipocrisia e decepção.
A mulher que vende seus favores ainda possui a liberdade de deixar o homem que os comprou a qualquer hora, “enquanto a esposa respeitável” não pode se livrar da união que a punge.
Todas as uniões não-naturais e não sacramentadas pelo amor são prostituição, quer tenham sido ou não sancionadas pela sociedade ou pela Igreja. Tais uniões só podem exercer uma influência degradante sobre ambas a moral e a saúde da sociedade.

O Sistema é o Culpado



O sistema que força mulheres a venderem sua feminilidade e independência pelo lance mais alto é um ramo do mesmo sistema mal que dá a uns poucos o direito de viver encima das riquezas produzidas por 99% de seus companheiros,  que devem labutar de sol a sol para mal conseguir manter o corpo e a alma juntos, enquanto que os frutos de seu trabalho vão sendo sugados por uns poucos vampiros ociosos rodeados por toda a luxúria que a riqueza pode comprar. Veja por um momento, os dois quadros deste sistema social do século dezenove. Veja o lar dos abastados, aqueles magníficos palácios cujo custoso suprimento poderia colocar milhares de homens e mulheres necessitados em circunstâncias confortáveis. Veja os jantares destes filhos e filhas da riqueza, um único prato daqueles poderia alimentar centenas de famintos, para quem um prato de pão regado à água é uma luxúria. Veja estes devotos da moda, como gastam seus dias envisionando sempre novos meios de prazeres egoístas – teatros, bailes, concertos, yachting, correr de uma parte à outra do globo na sua louca busca por alegria e prazer. Pare por um momento, e olhe então para aqueles que produzem a riqueza que paga por todos estes excessivos prazeres não-naturais.

O Outro Quadro

Veja-os empoleirados em porões úmidos e escuros, onde nunca podem tomar um ar fresco, vestidos em trapos, carregando seu jugo de miséria do berço até a cova, seus filhos correndo nus pelas ruas, famintas, sem que ninguém lhes dê uma palavra ou um cuidado terno e amoroso, crescendo em meio a ignorância e superstição, maldizendo o dia de seu nascimento.
Vejam vocês, moralistas e filantropos, estes dois contrastes surpreendentes, e me digam quem deve levar a culpa! Aquelas que são levadas à prostituição, legalmente ou não, ou aqueles que conduzem suas vítimas a essa desmoralização? A causa não reside na prostituição, mas na própria sociedade; no sistema de desigualdade de propriedade privada, no Estado e na Igreja. Neste sistema do roubo legalizado, do assassinato e da violação de mulheres inocentes e crianças desamparadas.

A Cura Para O Mal

Até que este monstro não seja destruído, ainda não teremos nos liberado da doença que existe no Senado e em todos os outros cargos públicos; nos lares dos ricos, bem como nos barracos miseráveis dos pobres. A humanidade deve tomar consciência de suas forças e capacidades, deve ser livre para começar uma vida nova, uma vida melhor e mais nobre.
A prostituição nunca será suprimida pelos meios empregados pelo Reverendo Parkhust e outros reformadores1. Ela existirá tão logo exista o sistema que a alimenta.
Quando estes reformadores unirem seus esforços com os daqueles que lutam para abolir este sistema que gera de crimes de toda espécie, para erigir outro que se baseia na equidade perfeita – um sistema que garante a cada membro homem, mulher ou criança, a plena fruição de seu trabalho e um direito perfeitamente igual no proveito das dádivas da natureza e na obtenção do mais elevado conhecimento – a mulher se auto-sustentará e será independente. Sua saúde não será mais esmagada pela labuta e pela escravidão sem fim, não será mais vítima do homem, enquanto o homem não será mais possuído por paixões e vícios não-naturais e insalubres.

Um Sonho de Anarquista
Cada um adentrará o estado de casamento com força física e confiança moral um no outro. Cada um irá amar e estimar o outro e irá ajudar no trabalho não só para o próprio bem-estar, mas eles mesmos sendo felizes, desejarão também a felicidade universal da humanidade. Os rebentos de tais uniões serão fortes e saudáveis em mente e corpo e honrarão e respeitarão seus pais, não porque é um dever, mas pelo mérito dos mesmos. Eles serão instruídos e cuidados pela comunidade inteira e serão livres para seguir as próprias inclinações, e não será mais preciso ensiná-los a sicofancia e a arte da rapinagem sobre seus companheiros. Seu alvo na vida não será mais alcançado ganhando poder sobre seus irmãos, mas ganhando o respeito e a estima de todos os membros da comunidade.

Divórcio Anarquista

Caso a união de um homem e uma mulher demonstre-se insatisfatória e desgostosa para ambos, então, de maneira tranqüila e amigável, deverão se separar para não depreciar as diversas relações do casamento, ao dar continuidade a uma relação desagradável. Se ao invés de perseguirem as vítimas, os reformadores do dia unissem seus esforços para erradicar a causa, a prostituição não mais desgraçaria a humanidade. Suprimir uma classe para proteger outra é pior que loucura. É criminoso.Você homem e mulher moral, não dê de ombros!Não deixe seu preconceito influenciar você: veja a questão de um ponto de vista desenviesado.
Ao invés de empregar sua força inutilmente, junte as mãos para ajudar a abolir este sistema doentio e corrupto.
Se a vida conjugal não lhe roubou a honra e o auto-respeito, se você tem amor por aqueles que chama de seus filhos, então por amor próprio bem como pelo deles, deve buscar a emancipação e estabelecer a liberdade. Então, e não até então, o mal do matrimônio cessará.

Emma Goldman ( 1869-1940), anarquista russa.

Notas do tradutor:
*GOLDMAN, Emma. Anarchy and the sex question: 1896. Disponível em: . Acesso em: 21 nov. 2009, 16:20, ( Tradução  José Paulo M. Souza). Originalmente publicado no blog Literatura Anarquista” (http://literaturaanarquista.wordpress.com/).
[1] Charles Henry Parkhurst (1842-1933) foi um religioso e reformador social de destaque para a história política de Nova York, ficou conhecido por seu enfrentamento à corrupção da polícia quando eleito presidente da New York Society for the Prevention of Crime. N. do T.



NOTAS DE LEITURA

MENEZES, Lucianne Sant’Anna de. Pânico e desamparo na atualidade.  Ágora. Rio de Janeiro. 8(2) jul/dez., 2005, 193-206. Disponível em:
 
 
A partir da leitura do artigo “Pânico e Desamparo na Atualidade”, de autoria de Lucianne de Menezes, encontramos algumas reflexões através de uma perspectiva psicanalítica acerca da síndrome do pânico, doença psíquica  que vem  acometendo um número cada vez  maior de indivíduos na contemporaneidade.
Nesse sentido, a autora faz uma releitura freudiana concernente a tal psicopatologia, levando em consideração os impactos que a contemporaneidade tem causado na estruturação da subjetividade psíquica dos indivíduos.
Sigmund Freud compreendia que “o pânico é expressão da instalação de uma situação de perigo interna insuportável para o sujeito: a situação de desamparo, a situação de ausência de ajuda mútua” (MENEZES, 2005, p. 196). Assim, o sujeito se depara com uma substancial ausência de ajuda em sua vida, isto é, de proteção. Pois, não há a quem recorrer, nem ao menos aos pais. Estes, em um momento anterior, por sua vez representavam do ponto de vista simbólico certeza e estabilidade frente ao sofrimento.
Desse modo, verifica-se que o sujeito não consegue suportar essa condição de desamparo e como conseqüência disso, irá procurar novas possibilidades de se organizar (psiquicamente) que irão além da sua estrutura familiar. Logo, tais pessoas estabelecem uma relação masoquista de assujeitamento, humilhação e servidão para com o outro, na espera que este último lhe ofereça proteção e ajuda. Para uma melhor compreensão acerca de tais premissas,  Menezes argumenta que:


Lembremos que um dos impasses que a modernidade criou para o sujeito foi o fato de não poder contar mais com a figura do pai protetor onipotente, isto é, ‘o pai não garante mais nada em termos de proteção subjetiva’ (BIRMAN, 2001ª, p.157). Foi isso que Freud (1930/1980) mostrou em o Mal – estar na civilização caracterizando este mal-estar como uma nostalgia do pai e um apelo à proteção do pai, presentes em qualquer sofrimento neurótico, em qualquer imaginário neurótico. Portanto, algo da ordem do masoquismo: o apelo à proteção do pai como forma de proteção contra o desamparo é um traço masoquista fundamental (2005, p.203).

       
Frente a tais questões é possível ainda salientar que na modernidade ou pós-modernidade (como preferem nomear alguns teóricos) em que estamos inseridos, o que marca as relações humanas é um individualismo profundo. No qual não há mais espaço para o ato de preocupar-se, oferecer amor e cuidado para com o próximo.
Verifica-se, então, que as formas de sentir estão desaparecendo em detrimento do imediatismo e consumismo exacerbados, como também intolerância (as mais variadas possíveis), violência e agressividade. Conseqüentemente, o "eu" e o “outro” tornam-se  meros objetos, na medida em que notamos a coisificação de homens e mulheres. 
Nesse contexto, como é possível conseguir a proteção do próximo? Ou melhor, ainda, “como tornar tolerável a experiência do desamparo num mundo desamparado?” (MENEZES, 2005, p.205).

Fernanda Caroline de Melo Rodrigues é graduada em História pelo Unipam (Centro Universitário de Patos de Minas) e graduanda em Psicologia pela mesma instituição.


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