terça-feira, 14 de abril de 2009

EIDOS INFO-ZINE # 15






Editorial

Caros amigos,

Na sua 15° edição, o Eidos traz um artigo de Jacy Alves de Seixas, publicando a tradução de um excerto do seu livro “Memoire et oubli: Anarchisme et Syndicalisme Revoluttionaire au Brésil”, onde a referida historiadora nos apresenta o perfil do proletariado militante brasileiro, profundamente impregnado pelo anarquismo e pelo sindicalismo revolucionário. Em seguida, destacamos o artigo de Fernanda Caroline de Melo Rodrigues, no qual se discute os obstáculos que as pessoas que fazem uso de cadeira de rodas encontram para circular, tanto a nível público como a nível privado, bem como algumas conquistas obtidas pelos mesmos. Por fim, trazemos um texto, de autoria de Thiago Lemos Silva, onde se aborda a importância do uso da biografia como instrumento de análise do movimento anarquista e operário na Primeira República Brasileira.

Boa Leitura e anarquizem!!!

Contatos

Fernanda Caroline de Melo Rodrigues: fernandaanarquista@yahoo.com.br
Thiago Lemos Silva: thiagobakunin@yahoo.com.br




O Proletariado Militante



A expressão “proletariado militante” era à época freqüentemente empregada. Hoje ela ainda nos é familiar, e seu sentido, sobretudo segundo os aportes leninista e gramsciniano, encobrem qualidades precisas, quase congeladas: a capacidade de direção, a disciplina, o saber, a autoridade, a previsão. Entretanto, nada está mais sujeito a mutação do que a noção, profundamente histórica, de proletariado militante; noção que se fez e refez no contato das experiências operárias e das viradas da história. A historiografia operária já sublinhou a dificuldade de se fazer um ideal tipo (MAITRON, 1.960), válido, como teriam dito os positivistas, para sempre e em toda parte.
Reformulemos, portanto, nossa problemática: o que significa ser militante operário em São Paulo ou no Rio de Janeiro no fim do século XIX até 1930? Certas questões emergem imediatamente, como que para marcar essa quarentena de anos sobre os quais recaem essas reflexões.
Primeira questão. O militante operário dos anos de 1890, habituado aos centros socialistas ou o aderente de um grupo anarquista ou de um partido operário, frequentemente um intelectual, é o mesmo que aquele de 1907 ou de 1917? E esse último poderia ser aquele mesmo que se lança nas eleições e organiza os blocos parlamentares, em 1927 ou 1928?
Segunda questão. Apreender (ou pelos menos apresentar) o que foi o militante da estratégia operária da ação direta (quais qualidades ele exalta? Quais ele recusa?), não seria ao mesmo tempo, apreender o movimento operário no que ele contém de valor político e de valor de participação, precisamente aqueles a partir dos quais ele foi então modelado?
Observemos primeiramente as diferenças entre o militante socialista ou anarquista dos anos de 1890 e o sindicalista das duas primeiras décadas do século XX. Pode se tratar dos mesmos indivíduos, de uma mesma geração de operários. Entretanto, o que vai modelar a sua prática cotidiana será completamente transformado em apenas alguns anos. Um verdadeiro abismo os separa e, em certos aspectos, se levarmos em conta o peso da influência anarquista, os segundos se formam virando voluntariamente as costas para valores mais caros dos seus antecessores. De fato é difícil de ver, na estratégia da ação direta, uma única liga de resistência que teria feito suas as normas disciplinares dos grupos locais do “Partido Democrático Socialista” de 1896. Esses grupos, organizados em certos bairros de São Paulo, preconizam “não manifestar publicamente algum desacordo sem ter previamente consultado” as instâncias superiores do partido, e de fazer com que todos os membros sejam eleitores (“Programa do Partido Democrata-Socialista-grupos locais”, O Socalista, n° 4, 17/05/1896). A disciplina-e nem falemos mesmo de anti-parlamentarismo!- não era uma qualidade muito prezada nos animadores do sindicalismo da ação direta, à ela; eles lhe opuseram a iniciativa, palavra de ordem “promover a ação”, segundo as palavras de Neno Vasco.
Uma primeira distinção importante: o proletariado militante da estratégia operária da ação direta, nada tem a ver com o proletariado dirigente. De todas as evidências, é a influência anarquista e sindicalista revolucionária que devemos esse traço. A esse propósito, Neno Vasco escreve: “[...] os trabalhadores não devem ser dirigidos ou governados mesmo para o bom objetivo, mas, se dirigir e se governar eles próprios [...]” (VASCO, 1920, p.57).
Se ele não se pretende portanto dirigente, se ele se recusa a dirigir do alto as condutas, é para afirmar outras qualidades, que gostaria de atribuir tanto para o proletariado militante quanto para a fração, largamente, majoritária, dos trabalhadores sindicalizados. Assim, desde todo o início do movimento sindicalista no Brasil, vimos os libertários estigmatizar com insistência a inutilidade das “ direções” sindicais, que eles querem reduzir a funções.


Concluímos ainda, escrevem, em 1903, os sindicalistas revolucionários, a inutilidade e a nocividade das direções. Não precisamos presidentes para dirigir os homens que querem e sabem o querem. Sim, precisamos de uma administração, que nada tem a ver com uma direção [...] (O Amigo do Povo, n° 34, 13/09/1903).


Na realidade, as ligas de resistência, mesmo entre as mais combativas, não puderam jamais passar de um corpo mais ou menos estável e reduzido, de militantes que asseguravam a regularidade das tarefas administrativas, mas, também da tomada de iniciativas. Apesar disso, a idéia de que o proletariado militante, reunido nas associações operárias de resistência, guardava sua função reguladora, estava nas antípodas do dirigente proletário. Estamos aqui, mesmo sem dizer, muito longe do militante leninista (o “revolucionário profissional”) que será transformado mais tarde em paradigma, que crê que o proletariado sabe, mas, sabe que não sabe (a consciência política da classe deve ser introduzida de fora pelos dirigentes, organizados no partido). A dificuldade de descrever o militante operário da ação direta reside, em grande parte, no fato que seus traços foram apagados, seja pelo esclarecimento unilateral recaído sobre o militante leninista, seja pelo esclarecimento (deformador) recaído por esse último sobre seus antecessores entre as sombras.
Parece que o militante, ocasional ou permanente, da estratégia da ação direta, que marcou o mundo operário no Brasil, foi dotado de certas qualidades e de um perfil, do qual tentaremos delinear os contornos. Ele possui, por assim dizer, uma virtude especial; ele possui também um caráter.
Sua virtude: a exemplaridade. O militante operário tenta sensibilizar as classes operárias pelo exemplo. De certo, ele quer convencer, mudar as consciências e os comportamentos, despertar o proletariado brasileiro e tirá-lo da sua apatia, o levando para os sindicatos. Mas, tudo isso através do único exemplo da sua ação. O militante é exemplar pela sua ação; ele toma como modelo o quer suscitar, quer dizer a iniciativa individual e coletiva que os operários são capazes. Não há, sobre esse plano, uma diferença essencial entre o proletariado militante e o proletariado “ tout court”.
Os comentários dos partidários do sindicalismo revolucionário, no dia seguinte do “Primeiro Congresso Operário Brasileiro”, nos fornecessem elementos preciosos de análise. Eles nos remetem à imagem do militante exemplar, e do exemplo que está questão:


No congresso tudo se passa como no sindicato. Não há aqui uma maioria que legifera, que impõem as resoluções: pode haver entretanto uma maioria que decide agir. Sua única prescrição nesse caso, é[...] aquela do exemplo[...] convencer, levar pelo exemplo da ação-tal é a característica principal da ação sindicalista. ( “Sobre o congresso operário”, A Terra Livre, nº10, 13/06/1906).


Esse mesmo retrato é desenhado pouco depois da greve geral de 1907, alcançados pelo entusiasmo, os militantes sindicalistas revolucionários concluem que a melhor forma de organizar o proletariado local é fazer prosperar as ligas de resistência “pelo exemplo, pela iniciativa e pela propaganda, em que cada indivíduo participa enquanto entidade em cada agrupamento e faz na ação a aprendizagem da ação” (“Dois mundos, dois métodos”, A Terra Livre, n°35, 01/06/1907).
O exemplo a dar é, em uma palavra, aquele da ação. Com critérios análogos, Florentino de Carvalho vê a importância e a função social dos grupos estritamente anarquistas, rivalizando com outras associações operárias: “Particularmente, o agrupamento anarquista vem, pela difusão de sua doutrina e pelo exemplo de sua ação no seio das massas, realizar uma função de grande caráter social” (CARVALHO, 1927, p.148).
O militante dessa época é portanto alguém que se distingue sobretudo pela ação: ativo, capaz de tomar iniciativas (“nós queremos a livre iniciativa e a ação direta”- A Terra Livre, n°21, 27/11/1906), combativo ele está permanentemente na luta de classes; ele é ativista, no sentido em que ele se engaja e organiza ações. Ele é, sobretudo, aquele que quer influenciar e que é ele mesmo influenciado pela força do exemplo. Mesmo porque ele se coloca voluntariamente nas antípodas do dirigente planificador, mesmo se por vezes lhe aplicam esses atributos. Ora, a ação coletiva libertária por excelência (a greve geral) ultrapassa em larga medida os cálculos previsíveis dos melhores militantes: “A greve geral, prega a FOSP, não pode de forma alguma ser preparada na secretaria de uma federação operária, nem ser o resultado da resolução de uma meia dúzia de indivíduos – quer eles tenham ou não a influência sobre a massa operária” (“Greve Geral”, A Lucta Proletária, n°7, 29/12/1908).
Isso resulta em um caminho ambíguo, até mesmo trágico, da personalidade desse militante: ele se acomoda muito mal a etiqueta do dirigente, do chefe, cuja função, entretanto ele preenche frequentemente. Os chefes são desprezados porque os trabalhadores tendem a abandonar “sua confiança, sua iniciativa” (A Terra Livre, n°3, 07/02/1906). Assim, por exemplo, José Oiticica que em novembro de 1918 participa da organização de uma greve geral insurrecional, reagirá sempre à denominação de antigo chefe anarquista, que permanece na memória histórica. Ele nota, em 1954, a propósito de seu passado militante: “[...] nenhum de nós, anarquistas, não vê em Oiticica, o chefe do que quer que seja, e ele próprio recusará toda insinuação nesse sentido” (OITICICA, 1970, p.235).
Maitron estima que o militante operário francês no século XIX é antes de tudo um temperamental: “ele crê e ele ousa” (MAITRON, 1960, p.73). Poderíamos dizer do militante sindicalista brasileiro das duas primeiras décadas do século XX que ele é também um crente, mas sua crença recai sobre o ato dele próprio de ousar. Ele crê na audácia, ou melhor, na possibilidade e na capacidade de ousar, a sua e a dos operários, ordinariamente “apáticos”, a quem ele se endereça. A fé de um Neno Vasco, por exemplo, parece recair menos sobre suas próprias convicções ideológicas do que sobre o que pode haver de revelador nos atos operários, por mais humildes que eles sejam. O “principal valor” da greve, insiste ele, é que ela “suscita as mais belas iniciativas” ( A Voz do Trabalhador, n°23, 15/01/1913). A exemplaridade do proletariado militante: ativo e consciente (ou sobretudo, consciente porque ativo) e cuja a principal qualidade é a iniciativa, que leva à ação os não sindicalizados. Ao contrário do militante dos anos noventa e daquele que, influenciado pelo leninismo, o sucederá, ele procura se afirmar não em nome de um saber nem da ciência, mas em nome do exemplo da iniciativa: em síntese, da ação.
Sua característica: a mobilidade. O militante da estratégia da ação direta se distingue por sua mobilidade. Ele se desloca constantemente, no eixo Rio-São Paulo, mas principalmente no interior do seu próprio Estado. Ele está sobre os lugares das greves ativas ou em preparação; ele está por toda parte onde o interesse pelas ligas de resistência começa a se fazer sentir e onde os trabalhadores se reúnem; ele ama, além disso, organizar conferências e partir em longas turnês nas grandes e pequenas cidades. Em suma, ele viaja para defender as greves, para responder as necessidades conjunturais da organização operária ou da propaganda sindicalista, anarquista ou simplesmente racionalista. A mobilidade é um traço bastante notável que não é raro de se encontrar nas expressões utilizadas por eles, tais como “pegar a mala” ou “sempre em viagem” que servem para caracterizar esse militante andarilho.
O anarquista Oreste Ristori é um exemplo significativo. Depois da capital de São Paulo, ele praticamente cruzou todo o Estado, seguindo as principais vias férreas, as vias tomadas pela produção cafeeira até chegar ao porto de exportação de Santos. Existem registros onde são mencionadas as viagens espetaculares empreendidas por Ristori, como a de 26 de fevereiro a 26 de março de 1906 (La Battaglia, n°69, 04/1906). Ele percorre durante um mês a imensa região da expansão cafeeira até Uberaba, no Estado de Minas Gerais, chegando às pequenas e médias cidades.
Observamos que os temas de suas conferencias eram abertos, “sobre não importa qual objeto”; seu itinerário nunca era fixado de antemão. Saber o que ele iria dizer, preparar seus discursos, estabelecer uma hierarquia entre os objetos, parecia preocupar menos esse militante do que traçar o espaço a percorrer no seu dia-a-dia. Ristori tinha ao mesmo tempo a faceta do agitador social, do educador, mas também do organizador. Durante o primeiro de maio, desse mesmo ano (1906), nós o encontramos em Santos, na manifestação organizada pela federação operária local (a “Internacional”), onde ele toma a palavra ao lado do socialista Valentim Diego, o então dirigente da “União dos trabalhadores do livro” de São Paulo.
A atividade militante de Ristori no interior do Estado recebe sem dúvida uma boa acolhida e não é sem uma certa eficácia, pois suas “viagens” são uma constante, pelo menos até em 1912, ano em que ele se dirige para o Rio de Janeiro e Minas Gerais. Em 1910, por exemplo, ele parte novamente sobre os trilhos da “Mogyana”, dessa vez com um programa de conferências pagas, “com o objetivo de apoiar a Escola Moderna”, durante as quais ele utilizará inovações técnicas, “projeções luminosas” ( A Terra Livre, n°65, 1/01/1910).
A mobilidade é também um fato para os militantes sindicalistas, ainda que nesse caso ela guarde uma base de caráter institucional ( a liga de resistência, a qual eles pertencem) ou, pelo menos, um território de ação ( o ofício ou o setor em que eles trabalham ou militam). Assim, vemos o estivador de origem espanhola Manuel Campos desenvolver sua atividade militante seja nas greves e nas organizações de operários do porto de Santos ( em 1912-1914, quando ele é expulso do país uma primeira vez, enquanto um anarquista português), seja no porto do Rio de Janeiro e no quadro da FORJ ( em 1915-1918 quando ele é preso depois de ter participado da insurreição anarquista de novembro); em 1919 o encontramos novamente em Santos. Carlos Dias, igualmente, se desloca consideravelmente apesar (ou em razão) de suas responsabilidades no movimento operário do Rio de Janeiro. No início de 1908, no quadro da FORJ e Liga Anti-militarista brasileira, recentemente criada para protestar contra a lei estabelecendo o serviço militar obrigatório, ele fez uma turnê de conferências que o levou até Campinas, no estado de São Paulo, onde seus discursos anarquistas provocaram um tal tumulto na liga operária local que ele é imediatamente levado a estação da cidade ( A Lucta Proletária, a.III, n°5, 15/02/1908). A partir desse sujeito, notamos a que ponto a mobilidade do militante se apóia na estrutura ferroviária desenvolvida na região cafeeira.
Sorelli é um desses militantes e dirigentes sindicais sempre “em missão” (id; n°2, 01/09/1908) no interior do Estado São Paulo ou em outros Estados. Assim, o encontramos, como representante da FOSP, em locais por vezes distantes, onde são declaradas greves. No momento da Greve da Companhia Paulista, por exemplo, ele se dirige imediatamente (desde o primeiro dia da greve) para Rio Claro, cidade onde liderou a “Liga operária” que foi, com a “Liga operária de Jundiaí”, o pólo organizacional da greve dos ferroviários. Sorelli faz frequentemente turnês de conferências ( que contrariamente as de Ristori) recaem sobre um tema privilegiado, a organização operária e a ação direta..
A mobilidade habitual do proletariado militante desses anos vai procurar um reconhecimento sobre o plano institucional, com a criação em 1920, de uma “secretaria excursionista”, votada durante o “Terceiro Congresso Operário Brasileiro” para sediar a comissão executiva da “Confederação Operária Brasileira” então reorganizada.
Mas, há igualmente mobilidade na estruturação interna do trabalho militante. O militante se desloca no interior de sua própria atividade de militante, tentando alargá-la. Assim, podemos encontrá-lo no autor de peças de teatro (caso de Neno Vasco, Mota Assunção, Sorelli) ou de romances de fundo social ou anarquista (caso de Gigi Damiani), por vezes mesmo, no ator (Sorelli, por exemplo). Podemos também encontrá-lo ensinando nas “escolas modernas”; ele que frequentemente é um autodidata (caso Florentino de Carvalho e Edgard Leuenroth) será o professor de novas gerações de operários e militantes. Desse modo, João Perdigão Gutierrez, militante importante da Federação Operária de Santos, que, quando criança, aprendeu a ler e escrever na escola sindical.
Mas, podemos também encontrar o militante da estratégia da ação direta na pessoa de Neno Vasco, que nada tinha de ativista e tudo de intelectual e de teórico. A historiografia guarda dele a lembrança de uma “figura tímida” (FAUSTO, 1977, p.93), e é verdade que Neno Vasco não se deixa classificar facilmente. Militante sindicalista e organizador sem sombra de dúvida, ele não foi, entretanto um familiar ou animador da vida sindical. Ele não fez conferências, não pediu jamais a palavra nos comícios públicos, nem participou de nenhum dos congressos operários realizados. Foi através de uma atividade jornalística, constante e diversificada (política e cultural), que Neno Vasco marcou sua participação. Neno Vasco não foi somente um bom difusor de idéias anarquistas e sindicalistas revolucionárias no Brasil, a elaboração de seu pensamento, tão atento as experiências locais, não puderam fazer menos que impregná-lo e nutrí-lo. A tensão, até mesmo originalidade, de sua “démarche” depende, certamente, disso. Ele é, em certos aspectos, o teórico mais autorizado do sindicalismo revolucionário no Brasil; inclusive pelas ambigüidades que sãos as suas e que interagiram com aquelas do sindicalismo revolucionário do país onde ele viveu durante 10 anos, de 23 a 33 anos.
Seu itinerário político pode ser rapidamente apresentado. Ele reivindica, primeiramente, a influência de Malatesta, a causa da atenção que esse último da à organização e ao movimento operário; em seguida, a de Fernand Pelloutier que ele cita, em português, os extratos do impecável “ Cartas aos Anarquistas” de 1899 e, finalmente, a dos sindicalistas revolucionários franceses ( sobretudo Pouget, Yvetot, Delessale). Mas, a sua adesão ao sindicalismo revolucionário, que para ele representa apenas um “simples eufemismo” de anarquismo operário não é sem falhas, precisamente em razão da persistência nele da influência malatestiana. Por todos esses motivos, é difícil de classificá-lo. E nem imaginemos subscrever a fórmula o “sindicalismo se basta a si mesmo” ( até mesmo porque o sindicalismo revolucionário brasileiro não a realizou). Suas convicções anarco-comunistas estão ligadas a uma concepção da revolução vinda de múltiplos locais, fundadas sobre a pluralidade e a complexidade das relações sociais, o que o tornou para sempre um desconfiado em relação a todo exclusivismo, fosse ele o “exclusivismo sindical” (a crença no “revolucionarismo automático” dos sindicatos) ou o exclusivismo anarquista (A Voz do Trabalhador, n° 38, 01/09/1913). Será que isso não seria a conseqüência durável da atividade dos anarco-comunistas desenvolvida em São Paulo sobre o seu pensamento?
Enfim, é maldade classificar o militante Neno Vasco e porque se preocupar, pois será que a riqueza de seu aporte ao movimento operário não reside precisamente na tensão constitutiva de seu pensamento? Inimigo das classificações, ele próprio nos fornece uma pista, em que ele se declara sem etiqueta, fora de classe, “desclassificado”. Na sua polêmica com Elyseo de Carvalho, que o havia designado como o chefe de dez mil (sic) anarco-comunistas de São Paulo, ele escreveu:

Dez mil comunistas! E eu no meio de tanta gente [...] Uff! Deixem me sair, dêem me licença meus senhores. Tenho sempre evitado os ajuntamentos: sofro de falta de ar e o calor e a poeira me incomodam. [...] o melhor seria talvez ter me deixado desclassificado, pairando no vago, no indeciso, nem sim nem não, antes pelo contrário, numa indeterminação de nebulosa, em pleno céu azul sob o sol claro (VASCO, Neno. Individualismo + Comunismo: (carta dum classificado). In: Kultur, nº 2, Abril de 1904, p.18.)





Quem quer que ele seja, é a esse brilhante intelectual “fora de classe” a quem devemos, no Brasil e em Portugal, reflexões apaixonadas sobre o movimento operário e o anarquismo de antes da guerra.


Jacy Alves de Seixas


Excerto do livro Seixas, Jacy Alves de. Memoire et oubli. Anarchisme et Syndicalisme Revolutionaire au Bresil. Paris: E.M SH. 1992, p.159-168. Livre tradução de Thiago Lemos Silva.




Bibliografia:

CARVALHO, Floretino de Carvalho. Da escravidão a liberdade. Porto Alegre: Renascença, 1927.
FAUSTO, Boris. Trabalho Urbano e Conflito Social. São Paulo: Difel, 1977.

MAITRON, Jean. La Personalite du militant ouvrier français dans la seconde moitié du XIX siécle. Lê Mouvement Sociale, IFHS. 1960.

OITICICA, José. Ação direta. Rio de Janeiro: Germinal, 1970.

VASCO, Neno. Concepção anarquista do sindicalismo. Lisboa: A Batalha. 1920.




Da liberdade outorgada à liberdade conquistada


Em uma das minhas inúmeras idas e vindas pelos diferentes espaços do Centro Universitário de Patos de Minas, me deparei certa vez, com um casal de universitários, que, estavam a conversar, de forma despreocupada e descontraída. Assim, não pude deixar de ouvir tal diálogo. Na medida, em que o mesmo era carregado por um tom, extremamente, convincente e porque não dizer apaixonante. Comentavam sobre poesias? Do primeiro momento em que se viram, e, a flecha do amor, então, os acertou? Ou ainda, quem sabe, conjecturavam planos para o futuro?
Ah, nada disso parecia fazer parte da narrativa dos dois. Pois, os mesmos estavam a falar sobre como a nossa querida Patos de Minas, ironicamente ou não, conhecida também como “Patos-Paris” é avançada. Uma vez, que, a mesma apresenta ruas envolvidas por rampas, espaços públicos e privados (como o mais novo shopping) providos de elevadores, telefones públicos adequados para que qualquer um possa vir a desfrutar da hospitaleira Patos, inclusive, e porque não principalmente, pelos cadeirantes.
Entretanto, o que mais me chamou a atenção na conversa do referido casal foi a forma como eles faziam menção ao Unipam. Segundo eles, o Unipam era uma instituição de ensino superior inigualável. Inigualável, porque essa instituição abrigava “perfeitos” espaços para que as pessoas que utilizam cadeira de rodas transitem por ali. São tantas coisas... Rampas, corredores amplos, salas e laboratórios adaptados...
Mas, até que ponto essas idéias correspondem à realidade?
Ora, basta dirigirmos o nosso olhar para as ruas, estabelecimentos públicos e comerciais, meios de transportes (sistema viário), ou ainda para o próprio Centro Universitário de Patos de Minas, que iremos perceber que essa a afirmação não é totalmente verossímil. Em todos esses lugares as pessoas que fazem uso de cadeira de rodas, se deparam com vários obstáculos que dificultam ou até mesmo impossibilitam a sua livre circulação. Pois, estes lugares são permeados por escadas, buracos, entulhos e tudo o mais que se possa imaginar.
Ah, mas, talvez alguém possa torcer o bico e argumentar que o Unipam possui sim, uma infra-estrutura, que, é capaz de incorporar as inúmeras pluralidades em seu interior. Infra-estrutura esta composta por rampas, locais espaçosos e de fácil circulação e blá, blá, blá... E há até quem diga que, o UNIPAM é uma instituição moderna e progressista, onde o homogêneo e o plural convivem de forma harmônica.
Diante de tudo isso, será que os nossos cem bilhões de neurônios, que, ajudam a formar e processar a nossa memória estão se esvaecendo, ou, então, apenas fingimos que não lembramos de como era o espaço do UNIPAM há apenas alguns anos atrás? Espaço este, que, era constituído por escadas e mais escadas, e, que, foi somente depois que determinados universitários que utilizam cadeira de rodas reivindicaram seus direitos é que o UNIPAM começou a tomar algumas providências. Mesmo assim, com um certo tom de desconfiança, uma vez, que, o próprio reitor chegou até mesmo a mostrar para esses universitários a “planta” da instituição e dizer que ao seu ver nada precisaria ser feito. Pois, ele não via nenhum empecilho e dificuldade para que tais indivíduos circulassem por ali.
O fato é que se não fosse essas pessoas a dar o primeiro passo em prol de condições mais dignas e humanas, o UNIPAM ainda continuaria o mesmo de alguns anos atrás. Portanto, mesmo que, inconscientemente, os sujeitos que reivindicaram, lutaram e articularam entre si, em prol de seus direitos, acabaram por colocar em prática os princípios da ação direta, termo este tão caro aos anarquistas. Como já dizia Neno Vasco “se alguma instituição concede liberdades... que os interessados não reclamam... não será aplicada.... De nada valem liberdades escritas e permitidas no papel; valem as que os homens conquistam, usam, sem pedir licença ou permissão”.

Fernanda Caroline de Melo Rodrigues.




Entre o Individual e o Coletivo: alguns apontamentos sobre o uso do método biográfico na pesquisa histórica do movimento anarquista e operário




Aparentemente, nada pode ser mais descolado e deslocado da realidade do que a suposta importância do gênero biográfico para a (re)construção da história do movimento anarquista e operário no Brasil durante a Primeira República. Afinal de contas, grande parte desses homens e mulheres dedicaram, quase que de forma evangélica, as suas vidas mais a “questão social” do que “questão pessoal” propriamente falada. Dito de outra forma, como pensar o individual dentro de um contexto que privilegia o coletivo?
A despeito disso, nos últimos anos, muitos historiadores, têm voltado a sua atenção para as trajetórias de vida desses homens e mulheres que, de alguma maneira ou outra, participaram da organização e das lutas da classe operária, interesse este que pode ser aquilatado pela redação e publicação de inúmeros trabalhos. Assim, aqueles nomes que tradicionalmente se diluíam nas motivações estruturais e nos sujeitos coletivos (a classe, o sindicato, o partido, a greve) ganharam rosto e personalidade, ao terem suas vidas pesquisadas e divulgadas.
Na direção de tais preocupações, o presente artigo busca discutir os fundamentos teóricos e metodológicos do gênero biográfico, procurando ao mesmo tempo mostrar, ainda que brevemente, a pertinência de sua utilização para o desenvolvimento das pesquisas situadas no âmbito da historiografia brasileira do movimento anarquista e operário.
Como se sabe, embora a biografia, enquanto método, sempre tenha gozado de uma grande popularidade na literatura, na história não poderíamos dizer o mesmo. O descaso da história em relação à biografia parece ter sido, até pouco tempo, uma opinião compartilhada pelas diversas correntes existentes no interior da historiografia contemporânea. Como indica corretamente Jacy Alves de Seixas:


(Essas) encontraram sua justificativa em registros teóricos variados que cunharam o feitio da historiografia contemporânea, marcado fortemente pelo historicismo - seja de cunho idealista ou de cunho marxista - e pela influência da Escola dos Annales [...] A Escola dos Annales, desde a sua formação, tendeu a anular o indivíduo privilegiando as grandes estruturas econômicas e culturais, o tempo imóvel e a longa duração. Os pioneiros Lucien Febvre e Marc Bloch, como é sabido, vincularam a crítica à biografia aos combates contra a história tradicional, apegada aos acontecimentos, à narrativa literária e às grandes personalidades da política. (SEIXAS, 1998, P.247)



Lentamente, mas irrevogavelmente, essa situação começa a mudar já na década de 1980. A partir da referida década, passamos a assistir, talvez em escala internacional, a um fenômeno denominado “renascimento” biográfico, que à semelhança de um furacão deixou a história totalmente abalada. Para além do abalo causado, o renascimento biográfico ajudou os historiadores a perceber a “crise” pela qual a história estava passando. Logo, não é nada fortuito que a crise da história tenha coincidido com o renascimento biográfico. Segundo Sabina Loriga:


Como sugeriu Lawrence Stone, devemos ver aí uma conseqüência da crise da “história científica”, baseada nos conceitos totalizantes de classe social ou de mentalidade, que tendiam a reduzir o sentido das ações humanas apenas a um subproduto de forças produtivas e de meios culturais. A crise de gravidade e de importância desiguais, da interpretação marxista, do modelo estrutural e da análise climotérica estimulou a estender e a aprofundar a noção histórica de indivíduo (LORIGA, 1998, p. 226)



A despeito das inúmeras diferenças existentes entre historiadores marxistas e historiadores dos Annales, é evidente que os seus esforços interpretativos se encontram e se compactuam ao privilegiarem o “sujeito coletivo” como paradigma de análise. Se valendo de conceitos como classe social e mentalidade, tais historiadores colaboraram, direta ou indiretamente, para a construção de um sujeito coletivo que se firmou e se impôs apagando os indivíduos particulares.
Tal renascimento apareceu muitas vezes, disfarçadamente, sobre o nome de “volta”, supondo que a reutilização do método biográfico pela história, significasse uma retomada do método biográfico tradicional, que possuía como objetivo realizar trabalhos baseados em uma história cronológica, factual e narrativa, sobre a vida dos grandes homens. Portanto, é com toda razão que Vavy Pacheco Borges critica como “algo bastante francês” (BORGES, 2002, p.249) falar em volta da biografia, pois os métodos utilizados pela historiografia contemporânea se diferem sensivelmente dos métodos utilizados pela historiografia tradicional.
O divórcio entre a biografia e a história tradicional parecia ser um evento difícil, quiçá impossível, de se operar. Nesse sentido, é possível entender, ao menos em parte, a dureza das críticas que Pierre Bourdieu dirigiu aos cientistas sociais, e que sem sombra de dúvida são também extensivas aos historiadores, sobre a utilização do método biográfico. Para Bourdieu, estes últimos tombam, frequentemente, no erro de descrever a vida do indivíduo:


[...] como um caminho, uma estrada, uma carreira, com suas encruzilhadas [...] seus ardis, até mesmo suas emboscadas. [...] ou como um encaminhamento, isto é, um caminho que percorremos e que deve ser percorrido, um trajeto, uma corrida, um cursus, uma passagem, uma viagem, um percurso orientado, um deslocamento linear, unidirecional. [...] que tem um começo (“uma estréia na vida”), etapas e um fim, no duplo sentido de término e de finalidade (“ele fará seu caminho” significa ele terá êxito, fará uma bela carreira), um fim da história. (BORDIEU, 2001, p.183-184)


De acordo com o sociólogo francês, essa noção segundo a qual a vida de um indivíduo se insere dentro de um curso linear e contínuo, traz consigo premissas que podem redundar em conclusões bastante perigosas: a existência de um eu individual coerente e harmônico.
Analisando a literatura moderna, Bourdieu registra que os grandes escritores, de Shakespeare a Proust, não fizeram mais do que colocar em questão a existência desse eu individual coerente e harmônico. A partir de uma nova apreciação da temporalidade histórica, apresentada no seu caráter intermitente e descontínuo, esses escritores revelaram um eu individual, atravessado por contradições e conflitos.
Para tornar inteligível esse eu individual contraditório e conflituoso, Bourdieu julga ter encontrado no seu conceito de habitus a ferramenta metodológica ideal para esse empreendimento. Homologando as condutas individuais e as condutas sociais, conclui que a diversidade assumida pelas condutas dos indivíduos reflete a diversidade existente nas estruturas da sociedade.
No que pese as contribuições de Bourdieu, que foram de fundamental importância para a problematização das relações tecidas entre biografia e história, pode se perceber a natureza criticante e limitável de suas conclusões. Ao aproximar e identificar, demasiadamente, as condutas individuais com as condutas sociais através do seu conceito de habitus, Bourdieu não consegue encontrar uma resposta satisfatória para a questão do papel que a liberdade do indivíduo assume na sociedade e, por conseguinte, na história. Ora, embora seja absurdo falar na oposição indivíduo-sociedade, não parece menos absurdo falar que as condutas individuais possam ser reduzidas às condutas sociais. De acordo com Giovanni Levi:

Parece-me que deveríamos indagar mais sobre a verdadeira amplitude da liberdade humana. De certo essa liberdade não é absoluta: culturalmente e socialmente determinada, limitada, pacientemente conquistada, ela continua sendo, no entanto uma liberdade consciente, que os interstícios inerentes aos sistemas de normas deixam aos atores. Na verdade nenhum sistema normativo é suficientemente estruturado para eliminar qualquer possibilidade de escolha consciente, de manipulação ou de interpretação das regras. ( LEVI, 2001, p.179-180).



A partir dessa reconsideração feita por Levi no que tange o papel ocupado pelo indivíduo na sociedade, pode-se vislumbrar uma outra possibilidade para a utilização da biografia na pesquisa histórica. Longe de considerar a biografia apenas como um recurso, que, em falta de algo melhor, serviria, no máximo, para ilustrar uma situação, como se as relações entre o indivíduo biografado e o contexto histórico fossem essencialmente harmônicas. Muito pelo contrário, segundo essa nova abordagem, a biografia viria justamente romper com as homogeneidades aparentes e revelar os descompassos latentes que existem nas relações entre as partes e o todo. Na avaliação de Loriga:


Numa tal perspectiva, elaborada nos últimos anos [...] não é necessário que um indivíduo represente um caso típico; ao contrário vidas que se afastam da média levam a refletir melhor sobre o equilíbrio entre a especificidade do destino pessoal e o conjunto do sistema social. Mais que o tipo, importa a verdade. Apenas um grande número de experiências permite levar em consideração duas dimensões fundamentais da história: os conflitos e as potencialidades. ( LORIGA, 1998,p. 247)


Além disso, tais premissas conduziram, inevitavelmente, ao questionamento dos conceitos de representação e representatividade, os quais estiveram, durante muito tempo, atrelados a uma historiografia que utilizava, ainda que de forma desconfiada, o método biográfico. Não restavam muitas dúvidas de que o objetivo visado pela biografia histórica não seria apenas a reconstituição de um contexto individual, mas, também de um contexto social. Todavia, parece que muitos historiadores encontraram dificuldades para realizar essa empreitada fora de tais marcos conceituais. Segundo, ainda, Loriga:


a distinção entre personagens operantes, enquanto elementos causais de uma cadeia real, e indivíduos indiferentes, considerados apenas como um lócus do conhecimento […] permite traçar as características de um grupo social. Uma vez privados da sua faculdade de agir […] a fim de serem historicamente interessantes[...] (esses) não podem ser senão homens típicos e próximos da média estatística. ( LORIGA, 1998,p. 247)


Ao formular as diretrizes teóricas e metodológicas do “Dicionário Biográfico do Movimento Operário na América Latina”, Robert Paris tece, também, sua crítica aos conceitos de representação e representatividade, advertendo que não intencionava “constituir uma galeria de homens ilustres ou um Gotha de dirigentes” (PARIS, 1997, p. 10) que, supostamente, resumem e representam a tendência de uma época no movimento operário.
Partindo das reflexões de Paris, mas, ao mesmo tempo indo além delas, Seixas, aponta o reducionismo e a insuficiência analíticos desses dois conceitos. No seu projeto para a confecção de um “Dicionário Histórico-Biográfico do(s) Anarquismo(s) no Brasil”, a historiadora enfatiza que:

uma biografia, ou mesmo um conjunto delas, dificilmente pode pretender ser intérprete de um movimento político, de uma época do movimento operário e, principalmente intérprete da ação ( muitas vezes marcada pela multiplicidade) de outros militantes. Além do aspecto mais evidente, de restrição e de subtração ( de um militante, uma organização representativos provavelmente obscureceriam ou desautorizariam o conhecimento de outros componentes do mundo operário), a noção implica a existência de um esquema ideal já construído onde o indivíduo (e as individualidades) possam se projetar, com a única finalidade de ilustrá-lo ou informá-lo. ( SEIXAS, 1998, p. 249)


Somando-se a isso, a biografia histórica ao tomar o indivíduo como pano de fundo para análise considera que somente a razão é incapaz de compreender a complexidade que o trajeto da vida de uma personalidade política encerra. Daí a necessidade de incorporar também os sentimentos e as sensibilidades. Portanto, segundo essa perspectiva, razão, sentimentos e sensibilidades são elementos essenciais para a apreensão do campo de forças que instituem e estruturam a ação política, tanto em nível individual, quanto em nível coletivo, e, seus papéis não podem ser negligenciados. A esse respeito, Pierre Ansart escreveu:


[...] as paixões políticas são coletivas, compartilhadas em graus diversos por uma categoria social, uma classe ou uma nação; são também individuais, experimentadas pelo sujeito. Elas são eminentemente psicológicas e devem ser consideradas como um lugar de relações dinâmicas entre os sujeitos e os grupos [...] elas ajudam a melhor compreender os vínculos entre os sujeitos e os poderes políticos, a melhor analisar as atitudes de obediência, submissão, de resistências ou revoltas. (ANSART APUD SEIXAS, 2003, p.).


Diante desse imenso quadro, apenas gizado, pode-se melhor avaliar a originalidade da biografia histórica. De acordo com Philippe Levillain, a sua fecundidade reside no fato de figurar, hoje, como:


O melhor meio [...] de mostrar as ligações entre passado e presente, memória e projeto, indivíduo e sociedade, e de experimentar o tempo como prova da vida. Seu método, como seu sucesso, devem-se à insinuação da sua singularidade nas ciências humanas, que durante muito tempo não souberam o que fazer dela. (LEVILLAIN, 2003p. 173)



Colocadas essas questões, é possível avançar mais de perto na análise da historiografia brasileira do movimento anarquista e do movimento operário. Como é sabido, a temática ligada a constituição do proletariado em sujeito da história, ou melhor, em sujeito da realização de uma racionalidade histórica, foi, durante muito tempo, o fio condutor das análises promovidas pela historiografia. Ao analisar parte dessa produção historiográfica, Seixas destaca que:

Esse sujeito coletivo foi o elemento privilegiado quase que exclusivamente do saber histórico. Durante muito tempo, na construção historiográfica do sujeito histórico coletivo, as individualidades foram simplesmente afastadas ou anuladas da memória operária, numa espécie de afirmação do sujeito contra o individuo. (SEIXAS, 1998, P.248)


Para Seixas, a utilização do método biográfico na pesquisa histórica veio, portanto, discutir e problematizar tais questões, trazendo consigo a possibilidade de perceber e devolver a multiplicidade e pluralidade das experiências anarquistas e operárias durante o período da Primeira Republica brasileira. Entre o fim da década de 1980 e do início da década de 1990, a historiografia, com a incorporação e utilização dos procedimentos teórico-metodológicos que a biografia trouxe, nos apresentou a vida e a obra de vários indivíduos, que, de diferentes modos, militaram no movimento anarquista brasileiro. Assim sendo, o militante anarquista poderia muito bem ser o sindicalista, como mostra Yara Aun Khoury ( 1997) em seu trabalho sobre Edgard Leuenroth e ainda Edilene Toledo(2004) em seu trabalho sobre Giulio Sorelli. Mas, poderia também ser o literato Avelino Fóscolo, como aponta Regina Horta Duarte (1991), ou então a feminista Maria Lacerda de Moura, como indica Jussara Valéria Miranda (2006). Em alguns trabalhos, o militante anarquista chega até mesmo assumir mais de um perfil, como sublinha Rogério Humberto Nascimento ( 2000) em seu livro sobre Florentino Carvalho, que além de um ativista sindical, era professor nas escolas modernas e racionalistas em São Paulo e Santos. Semelhante é o que se passa com Gigi Damiani. Segundo seu biográfo Luigi Biondi (2006) , Gigi Damiani militou em diversas organizações operárias, foi um excelente jornalista e chegou até mesmo a escrever romances com fundo social.
Todos esses trabalhos testemunham fartamente que o anarquismo brasileiro foi feito de forma radicalmente heterogênia, a partir da ação de vários indivíduos e individualidades.
Thiago Lemos Silva

Bibliografia:

BIONDI, Luigi. Na construção de uma biografia anarquista: os anos de Gigi Damiani no Brasil. In: DEMENICIS, Rafael Borges; REIS, Daniel Aarão. História do Anarquismo no Brasil, Niterói: EDUFF, Rio de Janeiro: MAUAD, 2006.

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. INFERREIRA, Marieta ; AMADO, Janaína. Usos e Abusos da História Oral. Rio de janeiro, FGV, 2001.

BORGES, Vavy Pacheco. Desafios da Memória e da Biografia: Gabrielle Brune Sieller.In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia. Memória e (Res) sentimentos: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Ed. Unicamp, 2002.

DUARTE, Regina Horta. A Imagem Rebelde: a trajetória libertária de Avelino Fóscolo. Campinas Pontes/ Campinas, 1991.

KHOURY, Yara Aun. Edgard Leuenroth: Uma vida e um arquivo libertários. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 17, n. 33, p. 113-149, 1997.


LEVI, Giovanni. Usos da Biografia. IN: FERREIRA, Marieta ; AMADO, Janaína. Usos e Abusos da História Oral. Rio de janeiro: FGV, 2001.

LEVILLLAIN, Philippe. Os protagonistas: da biografia.I N: REMON, René. Por uma História Política. Rio de janeiro: FGV, 2003.

LORIGA, Sabina. A Biografia como problema. IN: REVEL, Jacques. Jogos de Escala-a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998.

MIRANDA, Jussara Valéria. Recuso-Me: Ditos e Escritos de Maria Lacerda de Moura. Dissertação (Mestrado em História), UFU, Uberlândia, 2006.

NASCIMENTO, Rogério Humberto Zeferino. Florentino de Carvalho: pensamento social de um anarquista. Rio de Janeiro: Achiamé, 2000.

PARIS, Robert. Biografias e “Perfil” do Movimento Operário-Algumas reflexões em torno de um dicionário. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 17, n. 33, p. 9-30, 1997.
SEIXAS, Jacy Alves. Aspectos teóricos do Dicionário Histórico-Biográfico do(s) Anarquismo(s). In: XI Encontro Regional de História, 1998, Uberlândia. Universidade Federal de Uberlândia, 1998. p.247-250.

TOLEDO, Edilene Terezinha Anarquismo e Sindicalismo Revolucionário: a experiência de trabalhadores e militantes em São Paulo na Primeira República. São Paulo: Perseu Abramo, 2004.




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Prosseguindo com as atividades do Simpósio “Filosofia e Educação-aproximações”, organizado pelos cursos de História e Pedagogia do Unipam ( Centro Universitário de Patos de Minas), serão realizadas no dia 06 de maio de 2009, às 19h 30 min, as palestras “Marx e a Educação” proferida pelo professor Altamir Fernandes de Sousa e “Bakunin e a Educação” proferida pelo professor Thiago Lemos Silva. As palestras serão realizadas no anfiteatro do Unipam. Com entrada gratuita. Contamos com a presença de todos.

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