sábado, 3 de outubro de 2009

EIDOS INFO-ZINE # 19

Editorial


Caros Amigos

No seu número 19, o Eidos traz a publicação de um excerto do livro “As idéias absolutistas no socialismo” de autoria de Rudolf Rocker, onde este procura estabelecer os aspectos que diferenciam e identificam as propostas marxista e anarquista. O artigo de Thiago Lemos Silva, que discute o processo de degenerênscia e burocratização da revolução russa de 1917, que neste ano, aliás, está completando 92 anos. Logo em seguida,  o artigo do autonomista John Holloway abordando a ressonância do zapatismo entre os movimentos sociais contemporâneos. E finalmente, a resenha de Fernanda Caroline de Melo Rodrigues sobre “As cinco lições sobre psicanálise” de Sigmund Freud.


Boa leitura e anarquizem!

Contatos

Fernanda Caroline de Melo Rodrigues: fernandaanarquista@yahoo.com.br
Thiago Lemos Silva: thiagobakunin@yahoo.com.br


Social-democracia e anarquismo

A oposição entre a social-democracia e o anarquismo não reside tão-somente na diversidade de seus métodos táticos, mas primacialmente na diferença de princípios. Trata-se de duas concepções distintas acerca da posição do indivíduo na sociedade, de duas interpretações diferentes do socialismo. Desta diferença nas premissas teóricas, resulta por si só, a diferença na escolha dos métodos táticos.
A social-democracia, principalmente nos países germânicos e na Rússia, intitula-se, com preferência, de “socialismo científico” e aceita a doutrina marxista que serve de base teórica ao seu programa. Seus representantes afirmam que o devir da sociedade deve ser considerado como uma série indefinida de necessidades históricas cujas causas é preciso ir buscá-las nas condições de produção de cada momento. Estas necessidades acham sua expressão prática na luta contínua de classes divididas em campos inimigos por interesses econômicos distintos. As condições econômicas, isto é, a forma em que os homens produzem e trocam seus produtos, constituem a base férrea de todas as outras manifestações sociais ou, para empregar a frase de Marx, “a estrutura econômica da sociedade é a base real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e a que responde uma determinada forma da consciência social”. As representações religiosas, as idéias, os princípios morais, as normas jurídicas, as manifestações volitivas, etc., são meros resultados das condições de produção de cada momento, porque é “a forma de produção da vida material, que determina em absoluto o processo de vida social, política e psíquica”. Não é a consciência dos homens que plasma as condições em que vivem, mas ao contrário, são as condições econômicas que determinam sua consciência.
Assim considerando, o socialismo não é a invenção de algumas cabeças engenhosas, mas um produto lógico e inevitável do desenvolvimento capitalista. O capitalismo deve criar primeiro as condições de produção — divisão do trabalho e centralização industrial — nas quais unicamente o socialismo pode realizar-se.
Sua realização não depende da vontade humana, mas apenas de um determinado grau de evolução das condições de produção.
O capitalismo é a premissa necessária e ineludível que deve conduzir ao socialismo; seu significado revolucionário reside precisamente em levar em si, desde o princípio, o germe de sua própria destruição. A burguesia moderna, na qual o capitalismo se sustenta, teve de dar vida, para fundar seu poder, ao proletariado moderno, criando assim seus próprios coveiros. Pois o desenvolvimento do capitalismo se efetua com o rigor de uma lei natural em linhas perfeitamente determinadas das quais não há fuga possível. Pois está na essência desse desenvolvimento o absorver as empresas industriais pequenas e médias, substituindo-as por empresas cada vez maiores de forma que as riquezas sociais se concentrem em número de mãos cada vez menor. Simultaneamente se realiza, de modo impossível de conter, a proletarização da sociedade, até que, por fim, chega o momento em que se encontram frente a frente uma imensa maioria de escravos assalariados e uma pequeníssima minoria de empresários capitalistas. E assim como chegará o tempo em que o capitalismo se tenha tornado um estorvo para a produção, chegará necessariamente a época da revolução social, o momento em que se possa levar a cabo a “expropriação dos expropriadores”.
Para que o proletariado esteja em condições de assumir a direção da terra e dos meios de produção deve apoderar-se primeiro do poder político, o qual, depois de certa época de transição, isto é, depois da supressão total das classes, se irá extinguindo paulatinamente. A conquista do poder político é assim a tarefa principal da classe operária e para preparar a realização desta obra é necessário que os trabalhadores se organizem em partido político independente para a luta política contra a burguesia.
Desta maneira a social-democracia converteu a ação parlamentar no ponto central de sua propaganda, subordinando-lhe toda outra forma de ação. Sob a influência da social-democracia alemã a maior parte dos partidos socialistas dos outros países adotaram em maior ou menor grau o mesmo caráter. No transcorrer dos últimos cinqüenta anos conseguiram organizar em suas fileiras milhões de trabalhadores, colocar-se em todos os corpos legislativos do Estado moderno de classes e penetrar em numerosos casos até o ramo executivo do governo.
Uma imprensa fortemente desenvolvida e uma propaganda impressa realizada em grande escala foram abrindo constantemente à social-democracia novos círculos no mundo operário e na classe média. Esta obra é apoiada ainda por todo um exército de agitadores a soldo e empregados do partido que atuam no interesse de suas respectivas organizações.
Pela exclusão dos anarquistas e de outras tendências que repudiam a ação parlamentar, a social-democracia alemã conseguiu ainda eliminar sistematicamente toda oposição real nos congressos socialistas internacionais.
Desse modo, onde quer que lhe obedecessem massas operárias consideráveis, este partido se desenvolveu como um Estado dentro do Estado e por muitos anos tem estado em condições de esmagar, com desconsideração sistemática e inescrupulosa, qualquer outra tendência socialista.
Somente a catástrofe terrível de 1914 revelou o verdadeiro caráter da social-democracia, destruiu seu prestígio internacional e abriu brecha num edifício que parecia ser para sempre invulnerável a qualquer ataque.
O anarquismo, quer dizer, aquela tendência na ideologia do socialismo que se enfrenta mais irreconciliavelmente com a social-democracia, parte de outras premissas nas suas idéias sobre as condições sociais e a posição do indivíduo na evolução histórica. Seus partidários, de maneira alguma, desconhecem a poderosa influência das condições econômicas no processo geral da evolução social, mas também repelem a fórmula unilateral e fatalista que Marx deu a esta comprovação. Antes de tudo são de opinião que na investigação e apreciação dos fenômenos sociais, pode-se proceder por métodos científicos, mas que de nenhum modo é lícito considerar a história e a sociologia como ciências. A ciência somente reconhece aqueles fatos certos que foram irrefutavelmente estabelecidos pela observação ou experimentação. Neste sentido somente podem considerar-se científicas as ciências chamadas “exatas”, como a física, a química, etc.
A famosa lei da gravitação de Isaac Newton, em que se apoiam todos nossos cálculos astronômicos, é uma lei natural, científica, porque se verifica em todos os casos e não admite jamais “a exceção da regra”.
O desenvolvimento das formas sociais na história não se efetua todavia com a forçosa necessidade das leis da física. Podemos, na verdade, fazer conjeturas sobre a conformação social das condições sociais do futuro e estabelecê-las cientificamente, como pode calcular-se o período de revolução de um planeta. E é complicada e muito desconhecidos são ainda seus pormenores elementares para que possamos falar de uma lei natural férrea que possa servir de base para apreciar, sequer com relativa certeza, as forças motrizes do devir histórico nos tempos passados ou talvez ainda para averiguar as formas sociais do futuro. Por esta razão o socialismo não é uma ciência, não pode ser uma ciência e quando se fala de um “socialismo científico” é vã presunção e frívolo desconhecimento dos verdadeiros princípios da ciência.
Quem aceita a concepção anarquista não compartilha da crença de que o desenvolvimento das condições econômicas deva conduzir indefectivelmente ao socialismo, que o sistema capitalista leve já em si, por assim dizer, o germe do socialismo e que somente seja preciso esperar sua maturidade para que rasgue a envoltura.
Não verá nesta crença outra coisa senão a tradução do fatalismo religioso no campo da economia, o que se torna igualmente perigoso, pois ambas as crenças paralisam o sentimento impulsivo e o instinto de ação e engendram em vez de uma visão viva em constante luta por ampliar suas perspectivas, a mesma e inflexível fé dogmática. O anarquista de maneira alguma vê na divisão do trabalho e na centralização industrial as condições elementares do sistema capitalista de exploração, agudamente opostas por sua própria essência ao socialismo. Bem pode conduzir-nos o desenvolvimento econômico a novas fases da existência social, mas também poderá significar o ocaso de toda civilização. A horrível catástrofe da guerra mundial fala neste sentido uma linguagem eloqüente para todo aquele que tenha ouvidos e queira ouvir. Se os povos da Europa não conseguem com seu esforço fazer surgir do caos presente formas novas e superiores da civilização social nenhum profeta será capaz de prever a que abismo nos arrastará a fatalidade.
Não, o socialismo não virá porque deva vir com a inalterabilidade de uma lei natural; somente virá se os homens se armarem de firme vontade e forças necessárias para pô-lo em prática.
Nem o tempo, nem as condições econômicas, somente nossa convicção interior, nossa vontade, poderá estender a ponte que conduza do mundo da escravidão assalariada à terra nova do socialismo.
Tampouco compartilha o anarquista da opinião de que a evolução das formas sociais capitalistas constituem o necessário antecedente psicológico que prepara a mentalidade do proletário. A Inglaterra, a pátria do capitalismo e da grande indústria, não provocou, apesar disto, um movimento socialista de consideração, enquanto outros países de economia quase exclusivamente agrária, como a Andalusia e a Itália meridional, contam há muitos anos com fortes organizações socialistas. O camponês russo, que trabalha ainda em condições primitivas de produção, está mais próximo da ideologia socialista porque está vinculado com seus vizinhos muito mais intimamente que nós. O comunismo agrário que o camponês russo praticou por séculos implica uma constante colaboração e solidariedade e desenvolveu assim um instinto social tal que dificilmente se encontrará igual no proletariado industrial da Europa ocidental e central.
Não obstante tudo isso os teóricos da social-democracia russa anunciaram em nome da ciência que as instituições comunais antiquadas da povoação rural russa estão destinadas a desaparecer por não estarem em concordância com o desenvolvimento moderno e constituir em conseqüência um obstáculo para o socialismo.
Para os partidários do anarquismo, as formas de Estado e a legislação não são exclusivamente a superestrutura política da estrutura econômica da sociedade; as idéias, os conceitos de justiça e outras formas da consciência humana não são meros produtos do processo produtivo de cada momento, mas fatores determinantes do espírito humano que, se influídos pelas condições econômicas, reagem, porém, por sua vez, sobre essas mesmas condições econômicas da sociedade. Desta forma se origina uma série infinita de efeitos recíprocos até ser freqüentemente impossível comprovar um fator básico. Podem ser consideradas como materiais todas estas manifestações e pode supor-se com Proudhon que todo ideal é uma flor cujas raízes se encontram nas condições materiais da vida. Mas neste caso, as condições econômicas seriam somente uma parte dessas chamadas condições materiais gerais: não constituiriam a base férrea, determinante do absoluto processo evolutivo de todas as outras manifestações vitais da sociedade mas que estariam submetidas à mesma e nunca interrompida interação de todos os demais fatores da vida material. Assim, por exemplo, o Estado seria, sem a menor dúvida, em primeiro lugar, um produto do monopólio privado da terra, instituição nascida com a cisão da sociedade em distintas classes com interesses também distintos. Mas haveria também que admitir que uma vez existente dedica todas as suas forças à perpetuação desse monopólio e à manutenção das diferenças entre as classes com o objetivo de conservar assim a escravidão econômica. Converteu-se deste modo o Estado, no curso de sua evolução, no mais formidável organismo de exploração da humanidade. Tais efeitos recíprocos podem ser comprovados à vontade em qualquer número e em todas as formas imagináveis; são, na verdade, característica na evolução histórica da humanidade e se tornam tão evidentes que nossos neo-marxistas se vêem obrigados a fazer contínuas e novas concessões ante a crítica inexorável que vai destruindo sua interpretação da história.
Se para a social-democracia a conquista do poder político é a tarefa principal, prévia para a realização do socialismo, para o anarquismo é de importância decisiva a supressão de todo poder político.
O Estado não se formou por um ato de vontade social, mas é uma instituição nascida numa determinada época da história humana como conseqüência do monopólio e da divisão da sociedade em classes.
O Estado não surgiu para a defesa dos direitos da coletividade, mas exclusivamente para a defesa dos interesses materiais de pequenas minorias privilegiadas a expensas da grande massa. O Estado não é outra coisa que o agente político das classes possuidoras, a força organizada que mantém em pé o sistema de exploração econômica e o governo de classe.
Suas formas são variadas no curso da história mas sua índole essencial, sua missão histórica, é sempre a mesma. Para a grande massa do povo, o Estado, em todo tempo e em qualquer de suas formas, somente constituiu um instrumento brutal de opressão; por isto é impossível que sirva alguma vez a essas mesmas massas como instrumento de libertação. A social-democracia que, em seus diferentes matizes, está ainda empapada das idéias do jacobinismo, crê que é impossível prescindir do Estado porque somente concebe a realização do socialismo de cima para baixo por meio de decretos e “ukases”. O anarquismo, que aspira à destruição do Estado, vê somente um caminho para a implantação do socialismo e esse caminho vai de baixo para cima, pela atividade criadora do próprio povo e com a ajuda de suas organizações econômicas. Surge aqui uma questão em que aparece claramente a diferença fundamental entre ambas as tendências: a relativa à posição do indivíduo na sociedade. Para os teóricos do socialismo, o indivíduo isolado é somente um elemento insubstancial na engrenagem geral da produção social, uma “força de trabalho”, instrumento inanimado da evolução econômica, que determina irrevocavelmente sua vida mental e suas manifestações volitivas.
Esta concepção é o resultado necessário de toda sua doutrina. Enquanto tratam do indivíduo, consideram-no sempre como um produto do meio social ao qual aplicam, com todo o rigor, os conceitos gerais.
Os social-democratas amoldaram-se a uma determinada visão da realidade vivente e são de certa maneira vítimas de uma ilusão ótica quando confundem a miragem de sua imaginação com a própria realidade.
Não vêem na evolução histórica senão as rodas mortas, o mecanismo exterior e esquecem assim muito facilmente que atrás das forças e condições de produção há seres vivos, homens de carne e osso, com desejos, inclinações e idéias próprias e por isso as diferenças pessoais — que constituem depois de tudo a verdadeira riqueza da vida — somente lhes parecem aditamento supérfluo e a própria vida, algo completamente descolorido e esquemático.
O anarquismo segue também aqui outros caminhos. O ponto de partida de suas especulações sociais é o indivíduo isolado: não o indivíduo como sombra abstrata desligada de seu meio social, mas como ente social vinculado aos demais homens por mil laços materiais e espirituais.
Para apreciar o bem-estar social, a liberdade e a civilização de um povo, o anarquista não se fundamenta na produção quantitativa ou na “liberdade” formal estabelecida em qualquer constituição nem no grau cultural de um determinado período. Trata-se de determinar, pelo contrário, a participação individual que no bem-estar toca a cada ser, em que medida este se encontra em condições de satisfazer dentro do marco da coletividade suas inclinações, desejos e necessidades de liberdade.
Segundo estes dados formulará seu juízo sobre o caráter geral da sociedade. Para o anarquista, a liberdade pessoal não é uma representação indefinida e abstrata mas concebe-a pelo contrário como a possibilidade prática de que cada qual pode desenvolver suas forças, talentos e aptidões naturais. E como reconhece na consciência da personalidade a expressão suprema do instinto de liberdade repele fundamentalmente todo princípio de autoridade, toda ideologia da força bruta. A completa liberdade baseada na igualdade econômica e social é para ele a premissa única de um futuro digno do homem. Somente nestas condições pode dar-se, segundo sua opinião, a possibilidade de que se desdobre até sua máxima florescência em cada homem o sentimento de responsabilidade pessoal e de que se desenvolva nele a consciência viva da solidariedade em um grau tal que seus desejos e necessidades apareçam, por assim dizer, como resultado de seus sentimentos sociais. Para o caráter dos movimentos sociais, sua forma libertária de organização é de importância decisiva, pois é a que melhor responde à sua natureza íntima; assim é apenas natural que também neste sentido haja um abismo intransponível entre a social-democracia e o anarquismo.
Os partidários da social-democracia, que já se intitulam maioritários, independentes ou “comunistas”, são, por íntima convicção, jacobinos, representantes do princípio da centralização. Assim como a democracia é por sua própria índole centralista, de igual maneira o federalismo responde melhor à natureza íntima do anarquismo.
O federalismo foi sempre a forma natural de organização de todas as correntes realmente sociais e das instituições baseadas nos interesses coletivos, como foram, por exemplo, as federações livres das tribos nos tempos primitivos, as federações das cooperativas das feiras nos começos da Idade Média, as guildas ou corporações de artesãos e artistas nas cidades livres e as uniões federativas das comunas livres, às quais deve a Europa uma cultura tão maravilhosa. Estas eram formas de organização verdadeiramente sociais, na acepção ampla da palavra; nelas harmonizavam a livre atividade individual e os interesses gerais da coletividade; eram agrupações humanas engendradas espontaneamente pelas necessidades da vida. Cada grupo era senhor de seus próprios assuntos e estava federado ao mesmo tempo a outras corporações para a defesa e a prosperidade de seus interesses comuns. O interesse coletivo constituía o eixo de suas aspirações e a organização de baixo para cima era a expressão mais acabada destas aspirações.
Somente com a formação do Estado moderno começa a era do centralismo. A Igreja e o Estado foram seus primeiros e mais conspícuos representantes. Os determinantes da nova forma de organização não foram mais os interesses da coletividade, mas os interesses das minorias privilegiadas que fundavam seu poder na exploração e na escravidão da grande massa.
O federalismo, a organização natural de baixo para cima, foi substituído pelo centralismo, a organização artificial de cima para baixo.
A liberdade teve de ceder ante o despotismo, o velho direito consuetudinário se transformou na lei, a variedade na uniformidade e o esquema, a educação e a formação da personalidade no amestramento intelectual, a responsabilidade pessoal na obediência cega, o cidadão livre no súdito.
É significativo para o caráter despótico da social-democracia, o fato de que haja copiado sua forma de organização dos modelos proporcionados pelo Estado. A disciplina foi sempre e continua sendo a divisa mais característica de seus métodos educativos e com os mesmos meios com que o Estado forma súditos leais e bons soldados, a social-democracia forma companheiros de disciplina provada.
Uniu milhões de partidários sob sua bandeira, mas afogou também a iniciativa fecunda e a capacidade de ação autônoma nas massas.
Engendrou enfim um árido governo de empregados, uma nova hierarquia, uma espécie de providência política ante a qual a livre iniciativa e a independência de pensamento devem amainar as velas.
Somente assim se explica que a social-democracia haja podido extraviar completamente sua ação no ambiente estreito do parlamentarismo burguês, que a vulgar e mesquinha política do dia tenha podido chegar a constituir o ambiente espiritual de toda sua propaganda. Organizou ela seus eleitores como o Estado seus exércitos e erigiu, como este, em princípio supremo, a impotência espiritual. No caminho do poder político enterrou tudo o que originariamente havia nela de socialista, de tal forma que somente restou um encoberto capitalismo de Estado que se introduz no mercado político sob um rótulo falso.
A burguesia não encontrou ainda seu “próprio coveiro”, mas não se deve à social-democracia o fato de que aquela não tenha podido chegar a ser até agora o coveiro do socialismo.
O anarquismo é o inimigo indômito do Estado: repele em princípio toda colaboração nos corpos legislativos, toda forma de ação parlamentar. Seus partidários sabem que nem a mais livre lei eleitoral será capaz de atenuar os abissais contrastes na sociedade moderna e que o sistema parlamentar não tem outro objetivo senão o de emprestar aparências de legalidade ao sistema da mentira e das injustiças sociais e induzir o escravo a selar ele mesmo, com o selo da lei, sua própria escravidão. O método tático do anarquismo é a ação direta contra os defensores do monopólio e do Estado; trata de iluminar a consciência das massas pela palavra falada e escrita. Participa em todas as lutas diretas, econômicas e políticas, dos oprimidos contra o sistema da escravidão assalariada e a tirania do Estado e trata de comunicar a estas lutas, por sua colaboração, um mais profundo significado social, trata enfim de fomentar as próprias iniciativas das massas e de fortalecer nelas o sentido de responsabilidade. Os anarquistas são os genuínos sustentadores da revolução social, os que levam adiante por todos os meios a guerra contra o poder e contra a exploração do homem pelo homem, os que têm como bandeira de combate a libertação social, econômica e política da humanidade.
Constituem as hostes do socialismo libertário, os arautos da civilização social do futuro.


Rudolf Rocker

Excerto de ROCKER, Rudolf. As idéias absolutistas no socialismo. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/rocker.html.






Revolução Russa: a distopia do século XX

Em março de 1920, quase três anos após o desencadeamento do processo revolucionário que culminou com a tomada do poder pelos bolcheviques na Rússia, durante o mês de outubro, o teórico e militante libertário Piottr Kropotkin enviou a Lênin uma carta, onde revelava de maneira breve e assistemática, suas observações, hoje antológicas, acerca dos destinos da Grande Revolução. De acordo com o anarquista, a centralização autoritária do poder e a falta de democracia que se instauraram na Rússia pós-revolucionária, constituíam fatores que, futuramente, transformariam, ironicamente por força e obra dos comunistas, a palavra socialismo em uma espécie de anátema.
Hoje, passados 92 (noventa e dois) anos da data em que se comemorou o primeiro aniversário da Revolução Russa, muitas coisas aconteceram. A Rússia não é mais socialista e a União Soviética nem sequer existe mais. Os países que logo após o término da Segunda Guerra Mundial aderiram ao modelo do socialismo real, como a Alemanha e a Polônia, não suportando mais os abusos e desmandos do “stalinismo”, o abandonaram ainda nos fins dos anos 1980, processo através do qual, em 1991, o colosso comunista seria reduzido a pó. Outros países como China e Cuba, que também adotaram o mesmo modelo, respectivamente nos anos 1949 e 1959, se encontram em uma posição bastante delicada, onde a adesão mundial ao neoliberalismo econômico e a globalização política, forçam os governos vermelhos remanescentes a se dobrar às imposições do FMI, através da adoção da cartilha do capitalismo, para continuarem existindo. Tal cartilha recomenda, desde a privatização das empresas públicas, até a abertura dos mercados internos. E as previsões de Kropotkin, tidas como pueris e ingênuas à época pelos então marxistas, se concretizaram de modo quase que profético.
Antes de dar continuidade a esse texto e expor alguns argumentos, cobram-se questões que nos são muito caras. Como por exemplo, o isolamento da Rússia em meio a outras nações capitalistas, ou mesmo seu atraso econômico. No entanto, embora acreditemos que estes fatores também tenham sua importância, acreditamos que outros fatores, até recentemente ignorados, ganham uma importância capital para a explicação do fenômeno totalitário na Rússia, se forem devidamente analisados, é claro. Concordando com Maurício Tragtenberg, o processo de degenerescência e burocratização do socialismo na União Soviética, começou não com Stalin, como dizem a maioria dos historiadores, e sim com Lênin, no momento em que este, ao lado de Trotsky e de outros membros do Partido Bolchevique, suprimiu todas as formas independentes e autônomas de organização dos trabalhadores, como os sovietes e os sindicatos livres. Quando, de maneira arbitraria e indiscriminada, começaram a perseguir todos os revolucionários não comunistas, que outrora eram a glória da Revolução, e que não passavam agora de traidores a serviço do capitalismo internacional.
Os resultados, como era de se esperar, foram a substituição dos sovietes por órgãos do Estado (que ironicamente manteve o nome dos organismos primitivos), a repressão aos marinheiros de Kronsdat em 1921, que reivindicavam, além do direito à greve e a eleições livres, o fim da comissariocracia do Partido e uma maior atuação dos conselhos operários na construção do socialismo. A destruição da Comuna autogestionária de Makhno na Ucrânia que, desde 1918, tivera êxitos significativos na coletivização dos latifúndios e fábricas entre os trabalhadores e também no impedimento das forças contra-revolucionárias, comandadas pelos generais brancos Deínikin e Wrangel e, por fim, a desarticulação do Grupo Oposição Operária, surgido no interior do Partido Bolchevique e liderado por Alexandra Kolontai que, no período do “Comunismo de Guerra”, criticou a adoção do método taylorista de organização do trabalho, apontando seus efeitos nocivos para o desenvolvimento do projeto socialista.
Como se pode perceber, foi lento e complexo o processo através do qual, com uma nomenclatura revolucionária, se deu a contra-revolução. E ainda existem pessoas que hoje, dizem que se caso Trotsky houvesse substituído Lênin após a sua morte tudo teria sido diferente! Para finalizar, acredito que seria profícuo e de grande valia mencionar, mesmo que em parte, algumas das reflexões de Emma Goldman a respeito da Revolução Russa, mas que seriam cabíveis para analisar qualquer outro processo revolucionário que queria realmente implantar o socialismo:

(...) Nunca será demais salientar que a revolução terá sido feita em vão, a menos que seja inspirada por um verdadeiro ideal. Os métodos revolucionários devem estar em harmonia com os fins revolucionários (...) pois eles só poderam servir como uma verdadeira e segura ponte para a nossa vida se forem construídos com os mesmos materiais da vida que se quer alcançar (GOLDMAN, p8, 2005)

Thiago Lemos Silva

Versão revista e atualizada de artigo já publicado em Eidos info zine, n 11, 2006 (versão impressa)

Referências:

GOLDMAN, Emma. O Fracasso da Revolução Russa. Disponivel em: htp://www.nodo50.org/sabotagem/, Acesso em: out 2005.

Kropotkin Textos Escolhidos. TRAGTENBERG, Maurício (Org. e Trad.). Porto Alegre: L&PM, 1987.

TRAGTENBERG, Maurício. Reflexões sobre o socialismo. São Paulo: Moderna, 1986.
______________. A Revolução Russa. São Paulo, Faísca, 2007





Zapatismo urbano

Eu não sou um camponês indígena. Provavelmente você, caro leitor, tampouco seja um camponês indígena. Mesmo assim, esta discussão gira em torno de uma revolta camponesa indígena.
Os zapatistas de Chiapas são camponeses. A maior parte dos que escrevem e lêem este jornal é composta por habitantes da cidade. Nossas experiências são muito distantes daquelas dos zapatistas de Chiapas. Nossas condições são muito diferentes daquelas dos zapatistas de Chiapas, e nossas formas de luta também. Mesmo assim, a ressonância da revolta zapatista nas cidades foi enorme. Por quê? O que o zapatismo significa nas cidades?
Houve duas formas de reação nas cidades. A primeira é a reação de solidariedade: a luta dos indígenas de Chiapas é uma luta justa, e nós damos a ela todo o apoio material e político possível. A solidariedade define a luta como sendo a luta “deles”, e “eles” são índios que vivem em Chiapas. Não repudio essa reação, mas não é isso o que me interessa aqui.
A segunda reação vai muito mais além. Aqui não é uma questão de solidariedade com a luta de outros, mas de entender que os zapatistas e nós mesmos somos parte da mesma luta. Os zapatistas de Chiapas não nos dão um modelo que possamos aplicar à nossa parte da luta, mas vemos sua forma de luta como uma inspiração para o desenvolvimento de nossas formas de luta. Neste sentido podemos falar da expansão do zapatismo nas cidades, do desenvolvimento de um zapatismo urbano, para o qual o EZLN não é um modelo mas um constante ponto de referência.
Não há progressão linear aqui. Não estamos falando da expansão de uma organização (apesar de que certamente a expansão da Frente Zapatista no México é parte do processo). Tampouco se trata realmente de uma questão da expansão de uma influência de Chiapas. Não se trata de que as decisões do EZLN tenham influência nas lutas em Roma ou em Buenos Aires. É antes uma questão de ressonância e inspiração. A revolta zapatista teve enorme impacto nas cidades do mundo porque os temas que o EZLN levanta e as orientações que eles sugerem ressonaram fortemente com as preocupações e direções das pessoas nas cidades. Eles foram uma fonte constante de inspiração, porque formularam com particular clareza (não somente nos comunicados, mas em suas ações) direções e temas que já estavam presentes nas lutas das cidades.
O propósito de falar de zapatismo urbano é duplo. Por um lado é uma forma de focar mais de perto esse processo. O que é essa ressonância? Trata-se de uma ressonância real ou imaginária? Quais são as diferenças entre o zapatismo nas cidades e o zapatismo no campo? Quais são os problemas práticos para o desenvolvimento desse tipo de política nas cidades?
Mas, adicionalmente, falar de zapatismo urbano é falar de zapatismo como um desafio. Os zapatistas não pedem nossas simpatia nem nossa solidariedade. Comemorar os 10 e os 20 anos do EZLN não deveria ser uma celebração deles, mas um desafio para nós. Eles nos pedem para nos juntarmos em sua luta por um mundo de dignidade. Como o fazemos, nós que vivemos nas cidades, nós que escrevemos e lemos esse jornal?
A revolta zapatista foi um ponto de referência fundamental das lutas urbanas nos últimos dez anos. Mesmo assim há óbvias diferenças nas condições e formas de luta. Nós que vivemos nas cidades e vemos os zapatistas não estamos organizados como um exército. Não vivemos dentro de formas de estruturas de suporte comunais que existem em Chiapas. Não temos terra para plantar os víveres básicos necessários à sobrevivência, e não estamos, de forma geral, acostumados com os níveis de completa pobreza que constitui a experiência diária dos zapatistas de Chiapas.
Há aspectos na revolta zapatista que não encontraram nenhum eco nas cidades. Nós, zapatistas urbanos, geralmente não queremos ser organizados como um exército, e freqüentemente rejeitamos o militarismo como uma forma de organização e de conceito de luta. Nos atuais debates na Itália, os zapatistas são mesmo tomados como modelo para defender uma completa rejeição de toda violência. O outro aspecto do zapatismo de Chiapas que encontra pouca ressonância nas cidades é o seu uso de símbolos nacionais – a bandeira nacional, o toque do hino nacional. O movimento zapatista urbano tende a não ser nacionalista e em muitos casos é profundamente antinacionalista. Ele tem sido menos um movimento internacional do que um movimento global, um movimento de luta para o qual o capitalismo global, e não o estado nação, tem sido o principal ponto de referência.
Quais, então, são os aspectos da revolta zapatista que encontraram eco nas cidades do mundo? O mais óbvio é o mero fato da rebelião – o fato de que os zapatistas levantaram-se quando o tempo da rebelião parecia já ter passado, o seu !Ya basta! para um mundo que é tão obviamente obsceno.
Mas há mais que isso. Trata-se também que o seu !Ya basta! se volta também contra uma esquerda que tornou-se envelhecida, rígida e alienante. É a rejeição tanto do vanguardismo revolucionário quanto do reformismo estatal, a rejeição do partido como forma organizacional e da busca do poder como objetivo.
A rejeição das velhas formas de políticas de esquerda nos deixa um enorme ponto de interrogação. Isto em si é importante. O dito zapatista “preguntando caminamos” adquire uma ressonância particular, porque somos conscientes de que não sabemos o caminho adiante. O mundo à nossa volta nos faz gritar, mas onde vamos com o nosso grito, o que fazemos com o nosso grito? A política da rebelião é uma política de busca – não pela linha correta, mas por alguma forma de caminho adiante, alguma forma de tornar nosso grito efetivo. Não há partido para nos dizer qual caminho seguir, então devemos encontrá-lo nós mesmos.
A política da pergunta nos leva a certas formas de organização. A forma organizacional dos zapatistas de Chiapas se caracteriza por uma tensão, como eles mesmo enfatizam. Esta é a tensão concentrada em seu princípio de “mandar obedeciendo”. De um lado, estão organizados como um exército, com tudo o que isso significa em termos de linhas verticais de comando. Por outro, o exército se submete ao controle dos conselhos das aldeias, onde a discussão e o consenso são os princípios guias.
A rejeição do partido como uma forma organizacional significou (inevitavelmente, talvez) o renascimento do conselhismo, o renascimento do conselho ou assembléia. O conselho é a forma tradicional de expressar revolta que surge reiteradamente em rebeliões, da Comuna de Paris aos Conselhos de Bairro da recente revolta na Argentina. É uma forma de organização expressiva, que procura articular a raiva e as preocupações dos participantes. Isto pode ser contrastado com a forma partido, que não é expressiva, mas instrumental, desenhada para atingir o fim de ganhar o poder estatal. Como forma expressiva, o conselho tende a ser horizontal em suas estruturas, encorajando a livre participação de todos e procurando atingir o consenso em suas decisões. Visto dessa forma, o conselho não é tanto uma estrutura formal, mas uma orientação organizacional. Esta orientação organizacional – a ênfase na horizontalidade, o encorajamento da expressão das preocupações das pessoas, sejam ou não sejam “revolucionárias” ou “políticas” – tem sido um componente característico da atual onda de lutas urbanas: não somente dos conselhos de bairro da Argentina, mas igualmente de alguns dos grupos piqueteros, das Mães da Praça de Maio, dos Centri Sociali em Roma, Milano e Turim, do movimento altermundista em geral.
O conselhismo se relaciona com a questão da comunidade. Nas áreas zapatistas de Chiapas a comunidade existe, não como um idílio a ser romanceado, mas simplesmente porque a maior parte das pessoas de uma aldeia conhecem-se umas às outras durante toda a vida e porque há práticas estabelecidas de trabalho e tomadas de decisão comuns. Nas cidades, freqüentemente há muito pouco senso de comunidade. As pessoas que trabalham juntas não necessariamente vivem próximas, e pessoas que vivem próximas umas às outras freqüentemente não têm contato. O grito de protesto que sentimos é freqüentemente sentido como um grito isolado e desesperançado, um grito que compartilhamos na melhor das hipóteses com um punhado de amigos. A (re)construção de ligações de comunidade tem sido, portanto, um tema constante no movimento das cidades. A construção de centros sociais ou cafés alternativos, o encontro de pessoas em movimentos informais e dinâmicos criam novos padrões de comunidade e confiança mútua que são parte e parcela do desenvolvimento de formas conselhistas de organização.
Talvez o desafio central do zapatismo urbano seja o desafio da autonomia. Autonomia é simplesmente o outro lado de dizer que nós queremos mudar o mundo sem tomar o poder. Rejeitar a busca do poder estatal significa a rejeição do partido como forma de organização (entendendo partido como uma forma de organização orientada ao Estado). Mas significa muito mais que isso. Significa também uma mudança no entendimento do conflito social ou luta de classes. O conceito tradicional vê a luta de classes como uma luta pelo poder, uma luta pelo poder que inevitavelmente determina a agenda, os ritmos e as formas de luta. A confrontação é então o pivô da luta social. Se, entretanto, dizemos que não queremos tomar o poder, então muda toda a concepção de luta. O que é central agora não é a confrontação com o outro lado (o capital) mas a construção de nosso próprio mundo. Tentamos nos focar em nosso próprio fazer, para impulsionar o conflito para o nosso lado.
Isto ainda é luta de classes, ainda é confronto com o capital (inevitavelmente, uma vez que o capital é a imposição de um controle externo de nossa atividade). Mas tanto quanto possível nós tomamos a iniciativa, definimos a agenda. Fazemos o capital seguir a nossa agenda, e então se torna claro que a agressão vem deles, não de nós. Não podemos ser autônomos em uma sociedade capitalista, mas podemos impelir a nossa autonomia tão longe quanto possível. O capital é a negação da autonomia, a sempre repetida negação de nossa autodeterminação. (Como parte disso, o Estado é a sempre repetida negação do conselho). Se vemos a confrontação como o eixo da luta, então estamos antecipando e consequentemente participando nessa negação. Fazendo do desenvolvimento de nossa própria criatividade (nosso próprio poder-fazer) o centro do movimento, o capital é revelado como um parasita, forçado o tempo inteiro a nos perseguir. Isto é ilustrado pelo Caracoles, o estabelecimento zapatista de suas próprias Juntas de Buen Gobierno, nas quais os zapatistas desdenham o Estado, dão as costas ao Estado, não demandando nada dele nem confrontando-o abertamente, somente fazendo suas próprias coisas.
Mas fazer nossas próprias coisas, desenvolver nossa própria criatividade, não é o mesmo nas cidades e no campo. Não possuímos terra na qual possamos plantar mesmo os mais básicos alimentos. Pode ser possível ocupar terra para estas finalidades (como alguns dos grupos piqueteros na Argentina começam a fazer), mas para a maior parte dos grupos urbanos esta não é uma opção. Para desenvolver nossa autonomia somos forçados a situações contraditórias, nas quais é muito melhor reconhecer essas contradições do que maquiá-las, exatamente como os zapatistas tiveram o grande mérito de reconhecer desde o início a contradição de ser uma organização militar em um movimento pela dignidade humana. Grupos urbanos autônomos sobrevivem ou na forma de subsídios estatais (às vezes arrancados à força pelos próprios grupos, como no caso dos piqueteros que usam os bloqueios de estradas para forçar o governo a dar dinheiro aos desempregados) ou na base de alguma mistura de emprego e subsídios estatais ocasionais ou regulares. Então, muitos grupos urbanos são compostos de uma mistura de pessoas em empregos regulares, de pessoas que estão por escolha ou necessidade em empregos irregulares ou ocasionais e daqueles que (novamente por escolha ou necessidade) são desempregados, freqüentemente dependentes de subsídios estatais ou alguma forma de atividade mercantil para sua sobrevivência. Estas diferentes formas de dependência de forças que não controlamos (do capital) colocam problemas e limitações que devem ser reconhecidos. Ao mesmo tempo, a significação destas limitações obviamente depende da força coletiva dos grupos: no caso dos piqueteros, por exemplo, o pagamento dos subsídios estatais foi imposto por bloqueios de estradas e administrado pelos próprios grupos.
Todas essas diferentes formas de dependência do capital são impostas pela propriedade, pelo fato de que toda a riqueza produzida pelo fazer humano é congelada na forma de propriedade, que nos confronta e nos exclui. A limitação à nossa autônoma autodeterminação aparece na forma de propriedade, atrás da qual se colocam as forças da lei e da ordem que defendem a propriedade. Parecemos ser forçados, então, de volta à lógica da confrontação na qual perdemos a iniciativa, ou na qual somos forçados a nos focar em ganhar o poder, de forma que possamos controlar a polícia e mudar as leis de propriedade. Se excluímos esse caminho (simplesmente porque o controle do Estado tende a tornar-se o controle pelo Estado), como podemos avançar? Possivelmente desfetichizando a propriedade, vendo que a propriedade não é uma coisa estabelecida, mas um processo constante de apropriação, um verbo, não um substantivo. O problema então não é conceituar nossa própria ação em termos de desafio à propriedade, mas focar em nossa própria construção de um mundo alternativo e pensar como evitar a apropriação capitalista dos produtos de nosso próprio fazer.
Todos os problemas indicados apontam para os perigos de confundir uma ênfase na autonomia com um conceito de micropolítica. A noção de autonomia, como entendida aqui, aponta para a centralidade de nosso próprio fazer e o desenvolvimento de nosso próprio poder-fazer: se vemos o mundo dessa perspectiva, então é claro que o capital é o parasita e que os assim chamados “mandatários” simplesmente nos perseguem o tempo todo tentando apropriar-se dos resultados de nosso fazer criativo. O problema da revolução é o de livrar-se dos parasitas, evitar que eles se apropriem da criatividade e de seus resultados, para fazê-los irrelevantes. Esta luta não requer nenhuma organização central (e certamente nenhuma orientação em direção ao Estado), mas sua força realmente depende de seu caráter massivo. O que qualquer grupo particular pode conseguir claramente depende da força de um movimento inteiro pressionando em direções iguais ou parecidas. A força dos grupos componentes depende da força do movimento, assim como a força do movimento depende da força dos grupos componentes.
Qualquer que seja o modo como pensemos a revolução, nos deparamos com a tarefa de dissolver a Realidade. A transformação do mundo significa mover-se de um mundo governado pela realidade objetiva para um mundo no qual a criatividade subjetiva é o centro, no qual a humanidade se torne o seu “próprio sol verdadeiro”. A luta por tal mundo significa um constante processo de crítica, uma processo de minar a objetividade da realidade e mostrar que ela depende absolutamente para sua existência da criação subjetiva. Nossa luta é a luta contra o mundo-que-é, com suas regras de lógica que nos dizem que não-há-alternativa, com sua linguagem de prosa que fecha nossos horizontes.
A poesia da revolta zapatista (de seus comunicados e de suas ações) não é periférica ao seu movimento, não é a decoração externa de um movimento fundamentalmente sério, mas central para sua luta como um todo. O fato de que os zapatistas de Chiapas (e em algum grau outros movimentos indígenas latino-americanos) tenham tido tal impacto nas lutas urbanas do mundo tem muito a ver com a linguagem que eles usam. Não é somente uma questão de palavras bonitas, ou das indubitáveis habilidades literárias de Marcos. É acima de tudo o fato de que eles oferecem uma forma diferente de ver o mundo, uma visão que quebra com a lógica dominante do não-há-alternativa. A poesia (e naturalmente outras formas de expressão) vem jogar um papel decisivo na luta anticapitalista: poesia não como palavras bonitas, mas como luta contra a lógica prosaica do mundo, poesia como o chamado de um mundo que ainda não existe.
Isto é um romantismo perigoso? Estão os zapatistas, sem intenção, levando a juventude rebelde do mundo a formas de ação que são perigosamente não realistas? Recentemente, como parte das celebrações dos 10/20, os zapatistas enfatizaram a centralidade da organização em sua luta: esta é uma forma de contrariar a impressão de que sua luta é somente poesia, somente o poder da palavra?
Talvez haja um elemento de romantismo na ressonância da luta zapatista. Às vezes, para os apoiadores dos zapatistas que visitam as comunidades zapatistas em Chiapas, há indubitavelmente um choque entre suas expectativas e a realidade de suas experiências. Em geral, entretanto, não é o caso. Aqueles ativamente envolvidos na luta, seja nas cidades ou no campo, estão a par das dificuldades que eles enfrentam e da importância da organização. A poesia do zapatismo não deflete as pessoas da questão da organização. O que ela faz, ao invés, é abrir perspectivas em um mundo que parece tão terrivelmente fechado. Mais do que isso, ela sugere formas de ação que quebram com a lógica do capital e são mais difíceis para o capital integrar na textura da dominação.
A acusação de romantismo realmente tem a ver com a questão do poder. O “realismo” é identificado com a perspectiva que foca o poder e vê a organização e a ação como sendo instrumentos para atingir certas mudanças (sejam mudanças pequenas ou a mudança radical da sociedade). O que esta perspectiva realista não consegue enxergar é que a completa instrumentalidade do enfoque leva à adoção de formas de ação e de organização que neutralizam e desmobilizam o movimento por mudança. É precisamente porque o realismo instrumental não conseguiu atingir o objetivo da mudança social radical que as pessoas em todos os lugares se distanciaram deste enfoque, em direção a formas de ação que são expressivas, ao invés de instrumentais. Parte disso é a rejeição do objetivo de tomar o poder estatal e do partido como forma organizacional. A poesia do movimento é parte do mesmo processo.
Irá este romantismo poético provar ser mais realista do que o prévio realismo socialista? Não sabemos. O que sabemos é que o realismo da política do poder fracassou para atingir uma mudança social radical, e que a esperança está em quebrar a realidade, em estabelecer nossa própria realidade, nossa própria lógica, nossa própria linguagem, nossas próprias cores, nossa própria música, nosso próprio tempo, nosso próprio espaço. Este é o núcleo da luta, não somente contra “eles”, mas contra nós mesmos, que é o núcleo da ressonância zapatista.

John Holloway

HOLLOWAY, Jhon. Zapatismo urbano. Traduzido por Daniel Cunha. Disponível em: http://www.farj.org/








Freud e as Cinco Lições de Psicanálise ou o breviário da gênese e desenvolvimento de uma ciência

FREUD, S. (1909). Cinco Lições de Psicanálise. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol.11, 1980, P. 7-51.


“Prefácio para as cinco lições de psicanálise”, de Durval Marcondes, é embasado na exposição que Sigmund Freud realizou acerca de seus pressupostos teóricos, no ano de 1909, em uma conferência nos Estados Unidos. Sendo assim, é possível encontrar uma espécie de síntese que o próprio Freud tece em relação à sua obra, bem como o caminho que ele percorreu para que pudesse elaborar e formular seus principais conceitos psicanalíticos.
De forma bastante clara e sistematizada, Freud nos relata, a partir das experiências que vivenciou com seus pacientes, como se deu o início da psicanálise, a importância que Charcot e Breuer tiveram na confecção de suas idéias, a hipnose, a histeria e a neurose, o consciente e o inconsciente, a resistência, a repressão, os sonhos, os atos falhos, transferência e contratransferência, a sexualidade infantil, e os obstáculos que permeiam as idéias psicanalíticas.
Sendo assim, através do que foi mencionado anteriormente, Sigmund Freud tenta mostrar como os métodos psicanalíticos podem vir a contribuir no tratamento de indivíduos que apresentem algum tipo de neurose e conflitos psíquicos.
Mas, quais seriam esses métodos? Há de se salientar que, de início ele trabalha com o recurso da hipnose. No entanto, em sua visão, seria através da “escuta” que aqueles elementos inconscientes poderiam se tornar conscientes. Assim, paulatinamente, por meio dessa observação incansável e do trabalho terapêutico é que Freud defende sua teoria na medida em que constrói seus conceitos.
Depois de passar brevemente pelo método hipnótico, Freud conclui que este lhe parecia ineficaz, uma vez que o mesmo fazia com que o sintoma desaparecesse apenas momentaneamente. Foi durante esta experiência frustrada que ele vislumbrou a potencialidade de um método alternativo: a escuta. Segundo Freud na escuta, diferentemente do que ocorre na hipnose, o psicanalista tinha a possibilidade de “fazer o doente contar aquilo que ninguém, nem ele mesmo, sabia” (FREUD, 1980, p.24). Esse seria um modo de encontrar o caminho do complexo reprimido.
Na visão freudiana os conflitos psíquicos se originavam de possíveis traumas. Estas experiências emocionais traumáticas (reprimidas porque eram incompatíveis com as questões morais da própria personalidade) ficavam a nível inconsciente e se manifestavam por meio de sintomas orgânicos. Somando-se a isso, os histéricos e neuróticos, além de recordar acontecimentos dolorosos (que já lhe ocorreram há tempo), ainda se prendem a eles emocionalmente. Dito de outra forma, “não se desembaraçam do passado e alheiam-se por isso da realidade e do presente. Essa fixação da vida psíquica aos traumas patogênicos é um dos caracteres mais importantes da neurose e dos que têm maior significação prática” (FREUD, 1980, p.19).
Todavia, durante a experimentação prática do método em questão, Freud notou que seus pacientes desenvolviam certa dificuldade em processar os acontecimentos traumáticos que haviam vivenciado. Daí, então, os mesmos criariam uma espécie de mecanismo de defesa, impedindo com que as lembranças ligadas a tais acontecimentos viessem à luz do de suas consciências, o que Freud chamou de “resistência”.
Além disso, Sigmund Freud também se debruçou sobre a interpretação de seus próprios sonhos e o de seus pacientes. Pois, ali poderiam conter elementos inconscientes. Os sonhos se desmembram de modo “distorcido”, afinal essa seria uma maneira do ego lidar (de forma defensiva) com aqueles desejos reprimidos e ocultos (os de ordem sexual, por exemplo) que, no momento da vigília tolhem a sua passagem para a consciência.
Mas, não somente através da análise dos sonhos é possível revelar a parte oculta da mente e descobrir os seus segredos. Nessa direção, os denominados “atos falhos” que, em linhas gerais, são lapsos de linguagem, fuga temporária dos nomes próprios, brincar com objetos, dentre outros, são na verdade desejos reprimidos, impulsos, intenções que, devem ficar escondidos da própria consciência. Esse mecanismo pode vir a ocorrer tanto em neuróticos, como também em indivíduos normais.
Os desejos patogênicos, segundo os estudos freudianos, estão intimamente relacionados com os componentes instintivos eróticos. Isto se dá em virtude de que, a moralidade que recai sobre nossa “civilização” é tamanha que somos obrigados a reprimir a expressão e manifestação dos desejos sexuais. No entanto, tais desejos reprimidos não se iniciam na fase adulta ou na puberdade. Pois, os mesmo são de longa data: tendo sua origem ainda na infância. Sendo assim, somente tempos depois, é que o trauma (ocasionado pela repressão durante a infância) vem à tona através da manifestação de um sintoma.
A partir desses pressupostos é que Freud afirma que “a criança possui, desde o princípio, o instinto e as atividades sexuais” (FREUD, 1980, p. 39). Segundo ele, esta sexualidade infantil ocorreria por meio de sucessivas etapas e a satisfação é encontrada no próprio corpo, o que ele chamou de auto-erotismo. Além disso, toda criança teria uma espécie de disposição homossexual. Somente no final da puberdade é que o caráter sexual definitivo do sujeito estaria constituído. Logo em seguida esboça de maneira sucinta que “se quiserem, podem definir o tratamento psicanalítico como simples aperfeiçoamento educativo destinado a vencer resíduos infantis” (FREUD, 1980, p.45).
Entretanto, haveria naquele contexto, segundo Freud alguns obstáculos para a aceitação das idéias psicanalíticas. Assim, dentre esses entraves, ele nos chama atenção para o fato de que os processos mentais inconscientes ainda não são conhecidos e dignos de respeito por grande parte dos seres humanos. Contudo, seria o método da psicanálise o melhor caminho para o tratamento das repressões.
Portanto, em “Prefácio para cinco lições de psicanálise” pode-se encontrar um texto profundo, denso e ao mesmo tempo repleto de coerência, onde Freud sintetiza os seus caminhos percorridos para a construção e elaboração da idéia que ele tem de ser humano, ou seja, da psique humana. Através de seus diálogos, permeados de exemplos clínicos, é possível perceber o grau de envolvimento e de dedicação que ele teve para com a psicanálise. Ridicularizado por muitos, ovacionado por poucos. Foi em meio a esse contexto que, Freud desenvolveu seus conceitos, no final do século XIX e início do XX. Deixando, desse modo, um enorme legado para toda a humanidade. Pois, seus estudos ainda hoje são bastante pertinentes. Uma vez que, para se compreender homens e mulheres, todas as teorias e hipóteses existentes são, demasiadamente, insuficientes. Dada a complexidade dos mesmos.
Reconhecida a importância de Sigmund Freud, se torna evidente que não devemos levar em consideração apenas seus estudos a respeito da psique humana. Como já foi dito, o ser humano é por demais plural e complexo para ser entendido tão somente sob a ótica do inconsciente, dos impulsos e instintos sexuais, dentre outros pressupostos teóricos.

Fernanda Caroline de Melo Rodrigues


Notícias


Evento sobre o centenário da morte de Ferrer em Salvador-Bahia

SEMINÁRIO CEM ANOS SEM FERRER A PEDAGOGIA LIBERTÁRIA EM QUESTÃO



DIA 16 DE OUTUBRO (SEXTA-FEIRA)
19 às 22 HORAS

Maurício Tragtenberg, Leitor de Francisco Ferrer Por Doris Accioly
Educação anarquista X Pedagogia Libertária: a escola moderna na Bahia Por João Neto
DIA 17 DE OUTUBRO (SÁBADO)
9 às 12 HORAS
Educação libertária e a Biblioteca Comunitária José Oiticica Por Eduardo Nunes
Aristocracia Acadêmica Por Ricardo Liper
Realização: Instituto Sócio-ambiental de Valéria - ISVA
Local: FACED/UFBA
Lançamentos e Novidades da Editora Faísca.

A Faísca tem orgulho de anunciar três novos lançamentos, dois deles emco-edição com a editora Imaginário.
"A CIÊNCIA E A QUESTÃO VITAL DA REVOLUÇÃO" de Mikhail Bakunin * R$ 18,00 * 96 páginas * Imaginário / Faísca; "ANARQUISMO BÚLGARO EM ARMAS" de Michael Schmidt * R$ 8,00 * 80 páginas * Faísca; "A INTERNACIONAL: DOCUMENTOS E RECORDAÇÕES: VOL. I" de James Guillaume * R$ 32,00 * 232 páginas * Imaginário / Faísca.
Compre agora, entrando em contato com: http://br.mc657.mail.yahoo.com/mc/compose?to=vendasfaisca@riseup.net!


Dando continuidade ao seu projeto de lançamento de livros on-line, aFaísca Publicações apresenta seis novos lançamentos.São eles: "SOBRE A POLÍTICA DE ALIANÇAS-Problemas em torno da construção de um pólo libertário de luta" de José Antonio Gutiérrez Danton; "DA PERIFERIA PARA O CENTRO-Sujeito Revolucionário e Transformação Social" de Felipe Corrêa; "REVOLUÇÃO CUBANA-Mais à esquerda que o Castrismo" de Júnior Bellé; "POLÍTICA ANARQUISTA E AÇÃO DIRETA" de Rob Sparrow; "DE MOVIMENTO A PARTIDO POLÍTICO-Notas sobre alguns Movimentos Verdes Europeus" de Janet Biehl; "EM TORNO DA VIGÊNCIA DO SOCIALISMO LIBERTÁRIO-DEFINIÇÕES DE UM COMPANHEIRO" de Gerardo Gatti.
Para ver e baixar os livros, acesse:
http://www.alquimidia.org/faisca/index.php?mod=pagina&id=3905



Novas dissertações de mestrado sobre anarquismo são defendidas

No dia 11 de setembro de 2009, Carlos Eduardo Frankiw de Andrade defendeu a dissertação de mestrado em História “Blásfemos e sonhadores: ideologia, utopia e sociabilidades nas campanhas anarquistas em ‘A lanterna’ (1909-1916)”, sob a orientação da professora Zilda Grícoli Iokoi, junto ao programa de pós-graduação em História da USP.
E no dia 23 de setembro de 2009, Adonile Ancelmo Guimarães defendeu a dissertação de mestrado “Anarquismo e ação direta como estratégia ético-política (violência e persuasão na modernidade)”, sob a orientação da professora Jacy Alves de Seixas, junto ao programa de pós-graduação em História da UFU.
Nós do Eidos gostaríamos de parabenizar a ambos pelo excelente trabalho que desenvolveram em suas dissertações. Temos certeza que estes irão contribuir sobremaneira para compreensão da história do anarquismo.



CNJ suspende toque de recolher para menores em Patos de Minas

No dia 11 de setembro de 2009, O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou a suspensão do 'toque de recolher' para menores de idade em Patos de Minas, Minas Gerais. O toque de recolher havia sido determinado pelo juiz da Vara de Infância e Juventude da Comarca de Patos de Minas (MG), Joamar Gomes Vieira Nunes, e proibia crianças e adolescentes de circularem sozinhos na rua entre 23h e 6h.
A suspensão da ordem já veio tarde. Nós do Eidos concordamos com Bakunin e acreditamos que a liberdade das crianças e adolescentes não pertecem a seus pais, professores ou ao Estado, mas, sim a eles mesmos.


2 comentários:

Unknown disse...

PARABENS NANDA ARRAZOOOOO NOTA MILLLLL

Antonio Ozaí da Silva disse...

Meus sinceros parabéns!
O material do seu blog será uma contibuição importante em meu trabalho docente.

Muito obrigado.

Abraços e tudo de bom,