sábado, 29 de agosto de 2009

EIDOS INFO-ZINE # 18 ( PARTE 1)


Editorial


Caros Amigos


Há 73 anos, em 19 de julho de 1936, o general Francisco Franco deixou o Marrocos e se dirigiu para a Espanha com o objetivo de tomá-la. O povo, temendo a instalação de um governo fascista, se uniu e se organizou para deter o avanço das forças reacionárias. A partir desse momento se iniciam dois processos, que são distinguíveis, mas que estão conectados: a guerra civil e a revolução social.
Enquanto os fascistas e os republicanos lutam para conservar ou tomar o poder do Estado, os anarquistas, coadjuvados pelos socialistas, mobilizaram a população e desencadeiaram um processo revolucionário. A partir da organização sindical CNT - Conferderação Nacional do Trabalho - os anarquistas reunidos na FAI - Federação Anarquista Ibérica - iniciaram os procedimentos de expropriação e coletivização dos campos e fábricas.
Com base em núcleos descentralizados e federados por livre contrato, os operários e camponeses participaram diretamente da construção, em escala nacional, desse novo organismo econômico fundamentado nos princípios da autogestão. Os resultados dessas profundas mudanças apareceram rapidamente e logo se fizeram sentir. Terras e fábricas se tornaram produtivas, campo e cidade se aproximaram, saber popular e saber científico se fundiram e produção e consumo foram harmonizados.
Em 1936, a Espanha é, sem retórica alguma, um país de miséria. Realidade que se alterou substancialmente a partir desta revolução social. Pela primeira vez em sua história, o povo espanhol conseguiu senão o luxo, pelo menos a abundância.
Todavia, os anarquistas espanhóis estavam conscientes de que a construção da sociedade livre e igualitária não poderia, e nem deveria, ser apenas um processo de transformação econômica, por mais profunda que esta última fosse. Sabidos disso se esforçaram ao máximo para reformar a educação, oferecendo aos alunos, em sua maioria filhos de operários, um modelo de ensino e aprendizagem baseado na pedagogia libertária, que tinha por objetivo formar um indivíduo, ao mesmo tempo, independente e solidário.Trabalharam também para subverter as relações entre os gêneros e criar uma nova moral sexual, onde homens e mulheres teriam os mesmos direitos e deveres. Para tanto incentivaram o amor livre, a maternidade voluntária, a legalização do aborto e a dissolução do casamento monogâmico.
Esses são apenas alguns, dentre vários outros, projetos idealizados e implementados pelos anarquistas nesse período. Tudo isso deixa bem claro que uma sociedade que mereça ser chamada de socialista deve fomentar não só as relações econômicas, mas também as relações culturais.
Longe de assistir a apenas mais uma guerra civil, a Espanha, em 1936, assistiu a uma verdadeira revolução social. Revolução que seria progressivamente destruída nos anos de 1938 e 1939 por uma aliança internacional de forças políticas que congregava desde estalinistas até liberais, passando por nazistas e fascistas, que levou Franco ao poder.
Ao analisar as várias invenções libertárias surgidas na Espanha de 1936, somos surpreendidos, quase que de imediato, por uma pergunta: Ora, por que este importante episódio histórico é tão pouco conhecido?
Para grande parte da esquerda, atualmente imersa no cretinismo parlamentar e afundada no lodo do oportunismo político, a memória da Revolução Espanhola é insuportável. Todavia, uma vez que a credibilidade das instituições políticas, incluindo ai as de esquerda, se encontra em um rápido declínio junto a população, existe uma oportunidade para o anarquismo ressurgir e se fortalecer.
De qualquer modo, as possibilidades históricas que foram abertas pelo movimento libertário espanhol de 1936 estão dadas e se tornam cada vez mais conhecidas, permitindo, assim, vislumbrar outras alternativas para a nossa sociedade atual, tão carente de esperanças. Agora só resta saber que mundo afinal de contas nós queremos.
Conscientes de tais questões, nós do Eidos decidimos que o número 18 desta edição deveria ser dedicado a este importante episódio da história do movimento anarquista e do movimento operário internacional. Nesse sentido, os artigos publicados neste número trazem uma visão panorâmica sobre os vários experimentos libertários que foram ensaiados na economia, política, educação e sexualidade durante o breve, porém intenso, verão de anarquia vivenciado na Espanha de 1936. A despeito da falta de originalidade na seleção dos textos, haja vista que já foram publicados e são amplamente conhecidos, eles servem como uma primeira leitura para aqueles que ainda não estão familiarizados com o tema.
Além destes trabalhos, o Eidos n° 18 traz um artigo de Thiago Lemos Silva abordando o ingresso das mulheres no movimento anarquista brasileiro e, ao mesmo tempo, problematizando o aporte feminino no processo de construção da cultura política libertária. E por fim temos a publicação da resenha de Fernanda Caroline de Melo Rodrigues sobre o fascinante filme de Hans Huston sobre a vida e a obra de Freud.
E por falar em datas importantes, neste mês o Eidos completa nove anos de idade. Isso mesmo! Há quase uma década, o Eidos vem anarquizando Patos de Minas e virando a capital do milho de ponta a cabeça. Que o Eidos viva, no mínimo, mais nove anos.

Boa leitura e anarquizem!

Contatos

Fernanda Caroline de Melo Rodrigues: fernandaanarquista@yahoo.com.br
Thiago Lemos Silva: thiagobakunin@yahoo.com.br



A Prática da Autogestão Econômico-Social na Espanha

A Oposição Operária dos anos 20 na URSS, a Rebelião de Kronstadt (1921), a Revolução Makhnovista na Ucrânia (1918-1921) e as rebeliões na Hungria, Polônia e Tchecoslováquia representam a prática da autogestão das lutas pelo proletariado, nas quais sempre ressurgem as reivindicações de controle operário da produção, autonomia sindical e dos conselhos operários e rejeição da ditadura do partido único.
O movimento eurocomunista, no que tem de positivo, rechaça também a idéia da ditadura do partido único e do atrelamento dos sindicatos a um estado proletário futuro em nome da ditadura do proletariado. Nesse sentido representa uma continuidade das lutas referidas acima.
É na Espanha, no período 1936-39, que se dará, em 80% do país, a prática da autogestão das lutas operárias contra o fascismo e o capitalismo e da coletivização das fábricas e das terras. Porém essa pratica será esmagada pela ação combinada do fascismo espanhol com a política do PC espanhol de repressão à esquerda não-vinculada à URSS.
A ditadura de Primo de Rivera caiu em 1931, após anos de lutas das várias correntes de esquerda, anarquistas, socialistas e comunistas. É proclamada a república, caindo logicamente a monarquia.
Após estrondosa vitória eleitoral, o governo republicano sente-se com apoio social para efetuar a reforma agrária, sendo que apenas 1% da classe dominante (latifundiários e burguesia) detinha 51% da terra. A 19 de julho de 1936 se dá a reação da classe dominante através de um levante comandado por Franco. Imediatamente, os trabalhadores saem à rua e, através de suas organizações sindicais, armam-se para resistir ao golpe de Estado fascista.
A Espanha parte-se em duas: de um lado estão os nacionalistas, apoiados por Hitler e Mussolini; de outro, o governo republicano, abrangendo liberais, comunistas, socialistas e anarquistas. O golpe de Estado desfechado pela direita não consegue sucesso em metade da Espanha, notadamente na Catalunha.
Coloca-se, então, a questão: vitória na guerra civil contra Franco e posteriormente pensar-se em socialização, ou ao contrário, a socialização dos meios de produção, a revolução social como um instrumento de mobilização dos trabalhadores para a vitória contra Franco?
O proletariado espanhol não espera. Coletiviza as terras, as fábricas e os meios de transporte, resultado da decisão de uma seção plenária regional da Confederação Nacional do Trabalho (CNT), realizada em Madri a 30-10-1933: “Declaramos que se triunfarem as tendências fascistas e por esse ou outro motivo se produzir uma comoção popular, a CNT tem o dever de impulsionar os desejos populares para plasmar na realidade sua finalidade comunista-libertária”.
Mais ainda, essa seção plenária propõe “que se crie uma comissão de estudos econômicos que recolha toda documentação possível sobre a economia espanhola e elabore um plano construtivo imediato”.
Na época, a CNT possuía 2 milhões de trabalhadores filiados, e as Juventudes Libertárias contavam com 100 mil filiados.
O programa de coletivização das terras contou com a adesão de mais de 90% dos trabalhadores rurais, que se apossaram das terras, especialmente pelo fato de industriais e latifundiários terem se refugiado no Exterior. A 5 de setembro de 1936 realizou-se um congresso regional de camponeses, no qual se resolveu que a coletivização das terras seria dirigida pelos sindicatos. Os bens dos latifundiários e terras seriam coletivizados. Tais medidas transformaram-se em lei a 7-10-1936, quando o governo republicano confiscou sem indenização os bens dos proprietários comprometidos com o levante fascista.
A tradição de coletivismo agrário na Espanha muito contribuiu para tais medidas. Desde o início, a grande maioria dos trabalhadores da terra integrou-se espontaneamente às coletivizações. Efetuou-se uma aliança de classe entre os camponeses que coletivizaram as terras – de fascistas e não-fascistas, desde que fossem proprietários – e o proletariado urbano, que começara a socializar os meios de produção e os transportes públicos.
Em cada aldeia, uma assembléia geral de camponeses elegia os membros do comitê administrativo. Todos os homens aptos entre 18 e 60 anos tinham de trabalhar. Os camponeses organizavam-se em grupos de doze, encabeçados por um delegado, também camponês, e cada equipe se responsabilizava por uma zona de cultivo ou uma função, conforme o tipo de trabalho e idade de seus membros.
Todas as noites, o comitê administrativo se reunia com os delegados dos diversos grupos. Sobre os assuntos de administração local, a comuna reunia os trabalhadores numa assembléia geral, na qual tudo era discutido e resolvido.
Tudo era propriedade comum, exceto roupas, economias pessoais, animais domésticos, áreas de jardim e aves destinadas ao consumo. Coureiros, sapateiros e demais artesãos agrupavam-se em coletividades. As ovelhas da comunidade eram divididas em rebanhos de centenas de cabeças, confiadas a pastores e distribuídas pelas montanhas, racionalmente.
Estabeleceu-se uma remuneração fixa de acordo com as necessidades do grupo familiar. Cada chefe de família recebia por jornada de trabalho um bônus em pesetas que podia trocar por artigos de consumo nas lojas comunais. O saldo era depositado numa reserva individual e o interessado solicitava, se necessário, uma quantia limitada para gastos pessoais.
Assistência pública, eletricidade e medicamentos eram gratuitos, bem como o amparo à velhice. A escola era obrigatória aos menores de 14 anos, impedidos de trabalhar manualmente.
Camponeses que não quisessem integrar-se às coletividades não eram obrigados a fazê-lo; podiam participar dos trabalhos da comuna e enviar seus produtos aos armazéns comunais.
As comunas reuniram-se em federações cantonais e estas em federações regionais. Todas as terras de uma federacão cantonal formavam um só território. Foram criadas caixas de compensação para auxiliar as coletividades mais atrasadas tecnológica e economicamente.
Esse sistema implantou-se de forma global em Aragão, onde os trabalhadores agrícolas criaram, aí, um poder de base inédito na história da República, estimulados pelo avanço da Coluna Durruti, uma milícia libertária que combatia os fascistas na frente norte.
Constituíram-se em Aragão cerca de 450 coletividades que agrupavam 500 mil camponeses; na região do Levante, a mais rica da Espanha, formaram-se 900 coletividades; em Castilha foram criadas 300 coletividades integradas por 100 mil associados. O processo de coletivização atingia de Extremadura até parte da Andaluzia.
A autogestão agrícola era praticada em grandes superfícies com a supervisão de engenheiros agrônomos, aumentando em 50% o rendimento da terra; diversificaram-se os cultivos, iniciaram-se obras de irrigação e criaram-se escolas técnicas rurais e granjas piloto.
Esboçou-se um planejamento econômico com base nas estatísticas de produção e consumo que as coletividades entregavam aos comitês cantonais e estas aos comitês regionais, que, por sua vez, integravam-se inter-regionalmente.
A autogestão industrial iniciara-se, especialmente na Catalunha, região mais industrializada da Espanha. As fábricas foram postas a funcionar pelos trabalhadores, que administravam as empresas formando comitês revolucionários, sem ajuda ou ingerência do Estado.
Contrariamente ao que se deu na Revolução Russa, a Revolução na Espanha contou com a adesão livre dos técnicos. Daí realizar-se em Barcelona, em 1936, um congresso sindical, no qual estavam representados 600 mil operários, com a finalidade de ampliar a socialização da indústria. Um decreto de 24-10-36 do governo catalão oficializou a autogestão operária.
Foram socializadas as fábricas com mais de 100 pessoas, sendo os proprietários declarados “ociosos” por um tribunal popular. Cada empresa era dirigida por um comitê de administração, composto por 15 membros das diversas seções, eleitos pelos trabalhadores em assembléia geral, com mandato de dois anos. Esse comitê podia ser destituído pela assembléia geral e pelo conselho geral do setor industrial específico, este composto por quatro representantes dos comitês de administração, oito dos sindicatos operários e quatro técnicos nomeados pelo organismo tutelar.
Cabia ao comitê de administração a organização do trabalho e a fixação dos salários. O desajuste entre as empresas coletivizadas prósperas e as mais pobres em equipamento e em trabalhadores semi-qualificados ou qualificados era corrigido mediante a criação de uma casa de compensação à qual cabia a distribuição equitativa dos recursos.
Na Catalunha, trabalhadores e técnicos trabalhavam na criação de uma indústria de material bélico. As mulheres operárias constituíam a maioria da mão-de-obra, em razão de os homens válidos estarem incorporados, em sua maior parte, às milícias na frente de guerra.
Porém esse processo autogestionário começa a ser sabotado em plena guerra civil contra Franco. O Estado controlava os bancos e estes retiveram recursos de muitas coletividades.
O ministro da Agricultura, Uribe, do PC espanhol, ao mesmo tempo que legalizou as coletivizações das terras por decreto (16-3-36), incitou os camponeses a não entrarem nelas, em discurso de dezembro de 1936 dirigido aos pequenos proprietários agrícolas, assegurando que as armas do Estado e do PCE estava à disposição deles. Os fertilizantes importados, negados às coletividades, ele entregara aos pequenos proprietários. Transferira o abastecimento de Barcelona dos sindicatos aos comerciantes privados.
O PC da Catalunha agrupou em sindicato único os pequenos proprietários de terra, aos quais uniram-se os comerciantes e latifundiários, aparentemente conformados com a nova situação.
A 11.ª Divisão, dirigida por Lister, do PCE, destruiu com seus tanques as coletividades rurais e dissolveu os comitês administrativos; dispersou também o gado.
A imprensa do PCE clamava contra a “coletivização forçada”! Na área industrial, a imprensa desenvolveu uma campanha colocando em dúvida a honestidade dos comitês de fábrica nas empresas socializadas; o governo republicano negou-se a conceder créditos às empresas autogeridas, chegando mesmo a privá-las de matérias primas, vitais a seu funcionamento.
O governo republicano, já dominado pelo PCE, importa os uniformes militares, em lugar de solicitá-los às coletividades têxteis da Catalunha. E com o decreto de 11-9-1938 dá o golpe final na autogestão, militarizando as empresas e colocando-as sob a direção de inspetores membros do PCE.
A autogestão, que dominara 70% do território espanhol, englobando empresas industriais e agrícolas e escolas, provara ser uma prática inerente à classe operária quando a autogestão das lutas desta atinge determinado estágio.
A repressão aos movimentos operários de autogestão das duas lutas e de autogestão econômico-social se dá através de partidos políticos ou sindicatos ou pelo aparelho do Estado, tenha este o nome que tiver burguês, liberal, operário ou socialista.

Maurício Tragtenberg

Excerto de TRAGTENBERG, Maurício. Reflexões sobre o Socialismo .São Paulo, Editora Moderna, 1986, páginas 65 - 69.



A organização do conselho da cultura durante a Revolução Espanhola

Não cremos ser os primeiros a presumir que o fenômeno da instrução pública no regime capitalista se deve muito mais a necessidade que se tem na vida moderna de operários que saibam ler, escrever, calcular e etc., do que a um imperativo sinceramente cultural. De qualquer forma, a cultura no capitalismo é proporcionada em doses adequadas ao fim perseguido, manipulando-o e desviando-o no interesse das castas dominantes, em cujo proveito se orienta o ensino desde a escola primária até a universidade, sem contar os mil outros recursos culturais como o cinema, o teatro, o esporte, etc., por meio dos quais os dez mil de cima souberam dar bases legais, morais e materiais a seus privilégios e a escravização dos povos.
“O capital – afirma Ferdinand Fried – avalia a ciência a preço tão vil que considera as universidades nada mais que escolas profissionais onde se moldam forças melhores”.
A nova economia, como obra do esforço e da contribuição de todos – economia social e não economia de classe -, tem forçosamente que fomentar uma cultura verdadeira, sem outros fins que os do progresso e da elevação do homem ao nível de uma plena humanidade.
Referimo-nos nestas páginas ao organismo geral da nova economia; a cultura não entra propriamente neste terreno. Mas em nossa sociedade livre, que leva em conta o homem e não apenas o operário, não só nos alimentamos de pão, mas também de conhecimentos para superarmo-nos e para tornar a vida cada vez mais grata, confortável e nobre.
O organismo da cultura, estreitamente entrelaçado com os demais organismos da produção e da distribuição, forma-se também como entidade autônoma organizada de baixo para cima, desde a escola, com seu conselho administrativo integrado por mestres, pais e alunos, até o sindicato de professores, a reunião dos conselhos de escola de cada localidade ou circunscrição comunal, por exemplo, e o conselho local do ramo da cultura, onde se associam todos os sindicatos ou seções locais da cultura.
Vimos como em cada sindicato, em cada conselho de ramo, em cada conselho local da economia, etc., há instituições especializadas de ensino cuja sustentação depende dos organismos econômicos a cujos fins servem. Como exemplo, em 1920 havia 32 escolas de sericicultura em trinta cidades de Albacete, Alicante, Badajoz, Burgos, Cáceres, Canárias, Gerona, Granada, Huesca, Marruecos, Murcia, Palencia, Sevilha, Tarragona, Toledo, Valencia e Zaragoza. Todo pessoal docente associa-se em seus conselhos escolares, a seguir em seus sindicatos de professores de institutos especiais, por fim no conselho do ramo da cultura ou então nos conselhos do ramo industrial a cujos fim servem.
As universidades não terão a sua atual estrutura. As faculdades de química, por exemplo, passarão ao conselho do ramo da indústria química, as faculdades de engenharia irão depender dos respectivos conselhos de ramo; faculdades como a de jurisprudência serão suprimidas, passando a sua parte útil a depender de outras instituições de pesquisa e estudo.
As bibliotecas públicas, os museus de arte, os arquivos, os edifícios históricos, igualmente organizar-se-ão no conselho da cultura, primeiro com os seus conselhos, a seguir com os seus sindicatos ou seções.
Os espetáculos públicos, apropriados hoje em dia unicamente para render lucros ao capitalismo e explorados em quanto tal, serão instrumentos de cultura e se adaptarão a estes objetivos. O teatro, o cinema, o esporte, etc., serão organismos integrantes do campo da cultura e pela primeira vez cumprirão amplamente com suas incumbências.
Neste aspecto, a arte, privilégio de seletas e opulentas minorias, chegará a todos os espíritos acessíveis e enobrecerá a existência daqueles que a ela são sensíveis. Há grandes possibilidades de se darem já ao povo espetáculos dignos e belos de teatro, cinema, música etc.
A revolução, aqui, assim como no ensino em geral, logrará a mostrar imediatamente seus frutos. Boa parte do velho pessoal da burocracia, da magistratura, etc., encontrará na escola, tão deficiente na Espanha, um meio de assegurar-se honestamente a vida e ser útil a nova sociedade, se assim o desejar e se demonstrar a necessária capacitação.
Não somente se erradicará o analfabetismo, como também não haverá uma única criança que deixe de ingressar na vida equipada com verdadeiros conhecimentos técnicos para a indústria ou para a agricultura, ficando abertos a ela todos os caminhos para as mais elevadas especulações e pesquisas.
A revolução necessita de operários qualificados, camponeses de iniciativa, homens de base sólida; e a nova escola e as instituições especiais de ensino, de experimentação e de pesquisa fornecerão esta geração que nos falta. Com homens instruídos, conhecedores de seus ofícios, cientificamente formados, a Espanha deixará de ser o que é e poderá corresponder ao sonho de todos.
O capitalismo não pode sustentar o seu atual aparelho de instrução pública; a maior parte de seus orçamentos deve ser consagrada a força pública, aos diversos corpos de guarda, ao exército e a marinha. O professor é um pobre funcionário esquecido, que raia na miséria. A nova economia necessita de milhares de escolas a mais, de milhares de novos professores, de inúmeras escolas de artes e ofícios, de agricultura e de pecuária. Parte deste pessoal já existe, outro tanto pode formar-se em poucos anos.
Diego Abad de Santillan

Excerto de SANTILLAN, Diego Abad de. Organismo económico da revolução – a autogestão na revolução espanhola, São Paulo: Brasiliense, 1980. páginas 173-175.





“Es que no es digna la satisfacción de los instintos sexuales ?” :Amor, sexo e anarquia [Espanha, 1936]


Em janeiro de 1936, a revista anarquista Estudios, publicada mensalmente em Valência, na Espanha, inclui entre os inúmeros artigos que discutem questões de saúde e da moral, uma seção denominada "Consultório Psicossexual", aberta aos leitores. Através de cartas dirigidas ao Dr. Felix Martí Ibáñez, especialista em Sexologia, são apresentadas problemas sexuais, sentimentais e afetivos de várias ordens, aos quais o médico procura responder, tentando identificá-los a partir de sua especialidade.
O diálogo aberto entre o médico libertário e os seus leitores na revista é uma das muitas frentes em que ele se engaja, ao pôr em prática aquilo que considera sua tarefa principal : a reforma eugênica sexual, na Espanha revolucionária. Segundo ele e seus companheiros libertários, muitos dos quais também médicos, tratava-se de tirar o país do atraso secular em que se encontrava, criando as condições para a transformação dos hábitos da população, para a formação de uma juventude aberta para a vida, livre dos preconceitos e das repressões impostas pelo conservadorismo burguês e pelo obscurantismo religioso.
Focalizo os principais temas que emergem nas trocas e diálogos ocorridos neste espaço da revista, assim como no conjunto dos artigos aí publicados, entendendo que, ao abordar questões referentes à sexualidade, ao corpo e à moralidade, eles revelam a preocupação dos anarquistas em construir uma nova moral sexual e em transformar as relações de gênero no sentido da emancipação sexual tanto da mulher, quanto do homem. Para além de suas interpretações acerca dos problemas sexuais e amorosos, os libertários expõem suas práticas e experiências nessa área, constituídas num período, bastante denso de nossa história, isto é, durante o período da Revolução Espanhola.
Temos tido vários registros dos acontecimentos políticos, econômicos e sociais do período, já que se trata de um dos momentos mais interessantes do século 20, em se considerando as criações revolucionárias em múltiplos campos da vida humana, como as coletivizações das fábricas e dos campos e as inovações libertárias na educação e na área da saúde, em várias regiões da Espanha, entre 1936-1939.
Mais recentemente, alguns trabalhos ligados à área de estudos feministas, focalizam a experiência das mulheres revolucionárias, sua participação na esfera pública e as questões da moralidade para os anarquistas, durante o processo revolucionário. Martha Ackeslberg - Free Womem of Spain de 1991 (Indiana University Press) e Mary Nash Delfying Male Civilization : Womem in the Spanish Civil War, publicado em 1995 (Ardem Press) analisam a atuação das mulheres libertárias durante a Guerra Civil Espanhola, procurando perceber em que medida sua presença na esfera pública alterou de fato a dominação masculina, ou abalou os conceitos e valores tradicionais a respeito da divisão sexual dos papéis na sociedade. Mesmo que concluam pelo fracasso das propostas libertárias, esses livros mostram a grande desestabilização causada pela atuação dos anarquistas naquele período de profunda esperança, em que se anunciava a possibilidade de reorganização da sociedade em bases mais solidárias e criativas.
O objetivo maior deste trabalho é destacar o projeto libertário de construção de uma nova moral sexual, as formas de problematização dos temas apresentados e as respostas sugeridas, resgatando um debate histórico e experiências inovadoras que, como é de se supor, encontraram profundas dificuldades para serem implementadas, numa Espanha profundamente conservadora e religiosa. Ao mesmo tempo, os problemas levantados mostram a permanência não apenas das imagens e metáforas a partir das quais se constrói a experiência sexual, mas ainda a reincidência das dificuldades nesta área, encobertas por um profundo silêncio que apenas começa a ser quebrado em nosso tempo.
A reforma moral dos libertários
A Revolução Espanhola (1936-39) foi o momento privilegiado para que os anarquistas pusessem em prática várias de suas concepções a respeito da construção de novas formas de vida social. Certamente, desde sempre, eles procuraram implementar suas propostas de organização social, questionando o poder em todas as dimensões da vida em sociedade, defendendo a autogestão nas fábricas e no campo, construindo as "escolas modernas", praticando o amor livre, recusando o casamento civil e religioso, recusando a representação política, em nome da autonomia pessoal. As discussões em torno do amor e da sexualidade ganharam um maior espaço entre suas preocupações, já que seriam fundamentais para a construção de uma nova moral e de um novo homem, livre de preconceitos, dos tabus, das crenças obsoletas e das repressões sexuais.
Vários temas compõem o repertório das discussões que a revista apresenta mensalmente, entre 1934-36. "Nova Moral Sexual", "A Educação Sexual. A Puberdade", "O Instinto Sexual", "A Mulher e a Nova Moral", "O Pudor na Bíblia", "Prostitutas !", "Juventude e Liberdade", "O Culto Fálico na Roma Antiga", "Em torno do problema eugênico no Aborto", "Uma Utopia Sexual" são alguns dos sugestivos títulos dos artigos publicados, na grande maioria assinados por homens e por médicos. Uma das poucas escritoras da revista, aliás, é a libertária brasileira Maria Lacerda de Moura, já bastante conhecida em nossos meios.
Esses textos apontam para a construção da sociedade libertária, onde novas formas de amar, de viver a sexualidade, de se relacionar com o corpo, de conhecer o mundo e respeitar o próximo seriam possíveis. Para tanto seria necessário criar condições de esclarecimento sexual da população, através de cursos e programas de educação sexual, assim como da implantação de postos, estabelecimentos e outras instituições de atendimento prático.
Amor livre e plural, divórcio, maternidade consciente, aborto, fim da prostituição e criação de estabelecimentos de higiene para fins sexuais são algumas das propostas apresentadas pelos anarquistas, nessa direção.
Sugiro acompanhar por um momento alguns dos temas que emergem nas trocas de correspondência entre o Dr. Ibáñez e seus leitores, em geral, homens e mulheres de várias idades pertencentes ao mundo do trabalho e identificados com o anarquismo. A seção é aberta às cartas dos leitores em janeiro de 1936, afirmando-se como um espaço para consulta de problemas íntimos psicossexuais com o Dr. Ibáñez. A leitura das cartas enviadas ao longo do ano revela uma forte preocupação com o comportamento sexual das mulheres, seja na perspectiva dos companheiros e esposos que as escrevem, seja na das próprias mulheres. Contudo, isso não significa que os únicos temas abordados refiram-se à mulher, numa atividade explícita de indicar aos homens o caminho para introduzi-la à vida sexual, ou em outras palavras, para ensiná-la a ajustar-se às necessidades masculinas, como vemos nos manuais de "higiene do amor", publicados em vários países, no período. Trata-se de uma tentativa de promover a interação entre os casais, ou então, de ajudar o indivíduo a encontrar-se e resolver suas dificuldades a partir de conhecimentos bastante especializados na área da psicanálise e da sexologia, de Freud e de Havellock Ellis. Como afirma o Dr. Ibáñez, o consultório é uma espécie de santuário que visa trazer alívio não mais às "dores espirituais", mas às "dores sexuais".
Um dos temas mais freqüentes trazidos nas cartas refere-se à questão da incapacidade de amar das mulheres, ou da frigidez feminina. Assim, a primeira carta apresentada é escrita por um homem de 42 anos, casado há oito com uma mulher cinco anos mais jovem, lamentando seu fracasso em fazê-lo conseguir "o êxtase amoroso no ato sexual", dificuldade que se acentua após o nascimento do segundo filho.
As respostas do médico mostram as concepções médicas sobre o corpo e a sexualidade da mulher, no período. Destinam-se a trabalhadores(as) identificados com o anarquismo, o que se deduz pela maneira de apresentação dos leitores como "companheiros" ; aliás, o próprio médico se coloca como um anarquista revolucionário comprometido com a Revolução em curso. Discutindo o problema da frigidez feminina, o Dr. Ibáñez entende que há as causas endógenas e as exógenas. Estas remetem às dificuldades masculinas, como ejaculação precoce, ou impotência sexual relativa, ou ainda o uso de uma técnica sexual inadequada, que levaria à insatisfação sexual da mulher. Aconselha o doutor :"Examine objetivamente sua própria sexualidade, não apenas em sua constituição, mas em sua técnica", já que, "uma preparação amatória curta da mulher origina nela uma sobrecarga em sua sensibilidade", que não sendo satisfatória resulta numa grande frustração. Entre as causas endógenas da frigidez feminina, destaca as alterações endócrinas e sugere a consulta a um especialista. Aí afirma que esta frigidez depois do segundo filho é muito comum nas mulheres e tenta explicar :"a influência anestésica sobre a erótica feminina do nascimento do filho" pelo traumatismo do parto ; enquanto defesa psíquica pelo medo da gravidez ; pelo deslocamento do potencial efetivo da mãe para o filho.
Em outra carta revelando a mesma dificuldade em relação ao orgasmo feminino, o médico sugere que o homem considere o psiquismo feminino. As fantasias criadas desde a adolescência em relação ao ato sexual e ao parceiro provocam um choque no embate com a realidade ; portanto, propõe a reversão do quadro apresentado com a ajuda de um psicólogo para que a mulher reverta "as imagens eróticas indesejáveis e as substitua pelas normais, na construção de uma sensibilidade amorosa normal".
Esboçando um histórico da "evolução erótica da mulher", recorta três momentos fundamentais : uma fase de auto-erotismo, em que a menina se ama e em que passa muitas horas se adorando no espelho, ou mimando a boneca em que se projeta a si mesma, numa atitude totalmente narcisista. A segunda fase, a da "projeção parental da sexualidade", marcada pelos complexos de Édipo e de Electra, é um momento heteroerótico, em que a jovem passa a se apaixonar também pelos outros. Já a terceira fase, a da "especificidade erótica", o objeto de desejo desloca-se para homens específicos. Finalmente, a mulher chega ao casamento e aí emergem os problemas.
É interessante observar a preocupação feminista do médico que, ao contrário do pensamento médico conservador do período, entende que a mulher deve ter direito ao prazer sexual, tema recorrente na literatura anarquista desde o século anterior. Por isso, prega ele aos seus leitores do sexo masculino:
"Se queremos ser homens livres, temos de desejar a liberdade sexual para a mulher em suas experiências amorosas; se desejamos ser revolucionários temos de começar por revolucionar nosso espírito dominando nossos egoísmos."
Outro tema de discussão remete à menopausa. Respondendo ao leitor aflito diante da ausência de orgasmo da esposa e diante de sua entrada na menopausa aos 40 anos, o Dr. Ibáñez informa que assim "como sucede com sua esposa, não é um fato infrequente em nosso país.”.
A menopausa é identificada pelo médico como "o ocaso da sexualidade feminina", momento em que a mulher deixa de ter desejo e capacidade sexuais, que no homem não terão data marcada para acabar. A menopausa, isto é, o momento em que a mulher deixa de ter condições de engravidar, é confundida com um período em que morre para a vida sexual, no imaginário médico do período.
Analisando cautelosamente o caso exposto na carta pelo marido angustiado, o médico observa que com um "horizonte sexual" tão triste, pois ela teve cinco partos e nenhum "êxtase" em sua experiência sexual, ela só poderia querer encurtar o "indesejável caminho erótico", e chegar ao "crepúsculo final de uma sexualidade dolorida e insatisfeita". Daí a menopausa precoce.
Também dos problemas sexuais masculinos se ocupa o médico anarquista, a exemplo da impotência. De um lado, critica o esposo que, num segundo casamento, como diz em carta, só consegue ter prazer ao projetar a imagem da primeira esposa, já falecida, sobre a segunda, durante a cópula. A este comportamento denomina de "adultério espiritual" e recomenda uma maior concentração nas qualidades da esposa atual para um desempenho mais positivo.
Mas, a análise se torna mais interessante quando ele discute o "homossexualismo psicológico", a partir de outro caso exposto em carta. Trata-se de um trabalhador que, passando a freqüentar a casa do amigo, estabelece uma relação íntima com sua esposa, de certo modo, com sua própria conivência, já que cada vez mais o marido deixa espaço livre para o amigo. Ao final, ele deixa sua esposa, enquanto o outro busca explicação para o caso. Para o médico, trata-se de um caso de "homossexualismo psicológico", propiciado pelo adultério, já que estando vinculado à esposa, o marido consegue atrair outro homem para dentro de sua casa e indireta ou simbolicamente relaciona-se com este. Finalmente, algumas cartas colocam o problema de companheiros fiéis, mas muito interessados pelas figuras femininas nas ocasiões sociais. Ao que o Dr. Ibáñez define como erotomania, comportamento doentio decorrente de um forte sentimento de inferioridade por parte do homem.
"Negócios do aborto"
O tema da legalização do aborto se destaca como um dos mais importantes na reforma eugênica promovida pela Revolução na figura do Dr. Ibáñez, diretor geral do Sanidad e Asistencia Social da Generalidad da Catalunha, ao lado de Federica Montseny, que se torna Ministra da Saúde durante o governo de Largo Caballero. Em dezembro de 1936, é estabelecido um decreto que permite a interrupção da gravidez, "seja qual for a causa que o motive, dando um golpe assim ao curandeirismo assassino e dotando o proletariado de um modo científico e eficaz de controlar sua natalidade, sem temor aos riscos que ele poderia trazer..."
Demonstrando o avanço da medida, já conhecida na Suíça, desde 1916, na Checoslováquia, no Japão e na Rússia, durante os anos 20, o médico anuncia sua adoção na Catalunha, enquanto uma das principais conquistas revolucionárias para as mulheres. Condenando as medidas repressivas do aborto que levavam ao infanticídio e à morte da mulher proletária, afirma que deste modo “o aborto salta da clandestinidade e incompetência em que foi verificado até hoje, e adquire uma alta categoria biológica e social, ao converter-se em instrumento eugênico ao serviço do proletariado.”
Defendendo a importância da "reforma radical", o doutor mostra que ela permitirá paradoxalmente diminuir a taxa de abortos, já que ao lado dos centros destinados a ele, funcionarão outros destinados à fusão popular de recursos anticoncepcionais, "pois nosso ideal eugênico é que a mulher possua uma sólida cultura eugênica, que lhe permita evitar o aborto e não recorrer a ele senão como último recurso (...)".
Além disso, a reforma eugênica do aborto, tirando-o das mãos dos charlatães e traficantes de remédios, permitirá reduzir a mortalidade feminina por esta causa. Nesse sentido, ele entende que o projeto valoriza a maternidade e consagra o direito da mulher ao seu próprio corpo:
"Saudemos todos, irmãs e irmãos proletários, a reforma eugênica do aborto desde a Consejería de Sanidad y Asistencia Social (...). Liberadas sexualmente, as mulheres proletárias serão no futuro as criadoras dessa nova geração de trabalhadores, prenúncios românticos da nova era."
Ao fazer um balanço das criações revolucionárias da Consejería de Sanidad y Asistencia Social, na Catalunha, nos meses em que a CNT participa do Consejo de Gobierno, e elogiando fortemente a atuação de Federica Montseny, o médico destaca a descentralização da Sanidad e a municipalização dos médicos ; a constituição de conselhos locais e da comarca, a criação de hospitais intermunicipais ; a "socialterapia", isto é, a reeducação dos doentes, asilados e crianças em centros especiais :"nossos estabelecimentos para crianças substituíram o regime carcerário de antes pela vida livre em regime aberto, com o que o sol que irrompe abundantemente nos estabelecimentos simboliza também a luz que penetra nas velhas normas."
A defesa da "maternidade consciente" a exemplo do que ocorre na Maternidad de las Corts, caminho para os centros da natalidade é outro dos pontos destacados, assim como a instauração dos "liberatórios da prostituição", casas de recolhimento das mulheres. Vale notar a crítica às teorias "pseudocientíficas" do Dr. Lombroso. Finalmente, o médico defende a criação de consultórios psicossexuais de orientação juvenil e do Instituto de Ciências Sexuais da Catalunha, onde seriam realizados estudos e pesquisas sobre sexualidade.
Finalmente, os anarquistas se ocuparam da criação de espaços do prazer sexual. É o que aparece no artigo "Uma Utopia Sexual", publicado em janeiro de 1937.
"Uma Utopia Sexual"
O autor, Mariano Gallardo, inicia o artigo perguntando-se por que se critica a busca de prazer sexual :"Es que no es digna la satisfacción de los instintos sexuales ?"
Critica a repressão sexual e afirma suas intenções :"Precisamente o que aspiro com meus estudos sexuais é a criação de uma ética sexual nova e livre, que torne desnecessária a prostituição."
Para acabar com ela, propõe a criação de estabelecimentos sexuais higiênicos, onde homens e mulheres acorreriam quando necessitados. Ele imagina o "motel" de seus sonhos :
"Nesses estabelecimentos não haveria como população permanente senão o pessoal médico e os encarregados do estabelecimento (...).O pessoal que o freqüentaria seria "movediço e transeunte", formado por indivíduos de ambos os sexos,sãos e em idade de razão e de expansão voluptuosa."
Os médicos realizariam exames de prevenção e facilitariam o acesso aos métodos contraceptivos. Haveria camas nos estabelecimentos e outros objetos considerados necessários para o fim a que se destinam. Finalmente, se viessem além de casais, homens e mulheres desacompanhados, formar-se-iam dentro do estabelecimento, "casais de amantes para um momento. (...) A mulher ou o homem que não encontrassem ninguém de seu gosto, voltariam outro dia (...)”.
Concluindo, Gallardo defende-se ante a possível crítica ao projeto, observando estar comprovado que a necessidade sexual nem sempre está unida ao amor e que a juventude não pode receber educação sexual sem os meios para usufruí-la.
Finalizando : entre fracassos e vitórias...
Os anarquistas foram vítimas de muitas críticas, sobretudo por parte dos historiadores marxistas que, ao abrirem as portas para sua entrada na memória histórica, os condenaram aos porões por incapacidade política, romantismo ingênuo e esperança utópica, vale dizer, impossível. Ao mesmo tempo, num momento marcado por esta historiografia, para a qual os temas da sexualidade, do corpo, da mulher não tinham a mesma importância que os temas políticos e econômicos, o projeto de reforma moral e sexual dos libertários certamente passava bastante despercebido ou desvalorizado enquanto puro romantismo. Certamente, cada sociedade escolhe o passado que quer celebrar e a partir de que registros pretende inventá-lo.
Contudo, algumas observações podem nos levar a refletir um pouco mais de profundidade sobre o projeto social e moral libertário. Ao colocar- se como um pensamento "de fora" e excêntrico, o anarquismo desloca o foco de investimento estratégico do campo da política institucional para o da moral, afirmando que a luta se volta contra todas as formas de poder constitutivas das relações sociais e sexuais.
Para Malatesta, aliás, o anarquismo resulta da vontade pessoal e coletiva, de um profundo amor pelo próximo dificilmente captado pelas teorias científicas. Criticando violentamente as instituições, o anarquismo dissolve os enquadramentos identitários que normatizam e sedentarizam. A liberdade é, assim, ponto capital nesse pensamento que rejeita a separação entre meios e fins. Nesse sentido, entende que o amor e desejo escapam totalmente das codificações morais instituídas pela sociedade burguesa desde o século 19. É claro que, em se tratando de uma moral construída, sobretudo nos meios operários, os anarquistas enfrentaram enormes críticas e dificuldades e, aliás, eles mesmos as enfrentaram com a lucidez de sempre. Assim, discutindo o amor livre, "tema delicado e difícil", uma das principais figuras do anarquismo espanhol, Federica Montseny se pergunta em "A Mulher, Problema do Homem" artigo publicado na Revista Blanca, em 1932 :"quem, até agora, colocou em prática o verdadeiro amor livre ? que não seja apenas deixar de casar-se no religioso e no civil e mesmo sabendo que o matrimônio é o túmulo do amor."
A relação entre os gêneros " continua sendo a união subordinada de uma mulher a um homem, união mais penosa, mais coatora da liberdade feminina, porque ao prescindir da aprovação social, a deixa, na debilidade de sua desorientação e do equívoco moral em que ambas as morais a colocam, mais à mercê do carão. " O esforço para libertar-se do laço matrimonial"a oferece temerosa e indefesa ao capricho masculino e ante a animosidade familiar e social." Sem falar "desse outro amor livre, que consiste em provar mulheres, abandonando- as ao cabo de dois meses com a insolência triunfante de sedutor."; ou de uma forma disfarçada de prostituição que praticam algumas mulheres, diz ela. E qual será o futuro do amor, pergunta, deixando claro sua recusa do "comunismo amoroso", preconizado por Armand na França. Também acha difícil responder, pois em cada indivíduo, "o amor tem uma manifestação, uma variedade e um conceito”. Montseny entende que a modernização da sociedade liberou a mulher do domínio do patriarca para colocá-la nas fábricas e oficinas sob o domínio do patrão. Sem modelos, passou-se da mulher francesa para o tipo americano, em que"o cabelo curto iguala as cabeças." Desanimada, diz que não vê solução para o problema do dois sexos no mundo em que vive, embora aponte"o individualizamento do amor " como saída. E este exige uma nova mulher, mas também um novo homem. Os anarquistas preparam o amor livre, criticando a prisão representada pelo casamento monogâmico indissolúvel ; defenderam o divórcio ; procuraram resolver o problema da prostituição criando "liberatórios da prostituição", casas de recolhimento para as mulheres desamparadas. Entenderam que deveria haver espaços especiais para o sexo livre, entendido enquanto uma necessidade humana ; legalizaram o aborto, afirmando deste modo poder valorizar a maternidade e deixar com que a mulher decidisse da livre opção pela gravidez.
Muitas décadas depois, salta à vista o pioneirismo de suas propostas, muitas das quais foram incorporadas e são hoje amplamente praticadas em nossa sociedade, sobretudo nos setores sociais voltados à critica do autoritarismo em suas práticas cotidianas. Outros pontos, a exemplo do aborto e da prostituição, ainda são feridas abertas em nosso mundo e as respostas oferecidas hoje ainda estão muito aquém do patamar estabelecido por aqueles revolucionários nos anos 20 e 30. De qualquer modo, as possibilidades históricas estão dadas e se tornam cada vez mais conhecidas, permitindo ampliar o repertório de respostas possíveis que nossa sociedade quer conhecer. Resta saber que mundo, afinal, queremos.
Margareth Rago

Originalmente publicado em: Letra livre n° 33, ano 06 - 2002.

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