segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

EIDOS INFO-ZINE # 22


Editorial

No seu número 22, o Eidos publica um artigo de Antônio Gutierrez sobre o Haiti, demonstrando a dimensão social, e não apenas natural, da catástrofe que aconteceu recentemente neste país. Logo em seguida, está a publicação de um artigo sobre a objeção de consciência nos ditos e escritos de Maria Lacerda de Moura, que nos foi enviado pela sua autora Jussara Valéria de Miranda, a quem gostaríamos de agradecer por ter atendido nosso pedido de forma tão solicita. Um pouco mais a frente, temos o artigo de Antônio Ozaí Silva comentando a postura cínica de Boris Casoy quando tentava se retratar por ter ofendido, ao vivo, dois integrantes da classe dos garis de São Paulo. E por fim, trazemos uma resenha de Thiago Lemos Silva sobre o livro “Os Sovietes traídos pelos Bolcheviques” de Rudolf Rocker.
A charge que ilustrou esse número do Eidos foi confeccionada por Rafael Costa, que, gentilmente, permitiu a reprodução deste e de outros trabalhos de sua autoria por nossa parte.
Em janeiro de 2010, o Eidos comemora o seu segundo aniversário virtual. Esperamos que essa data se repita outras vezes e que o Eidos ainda possa soprar muitas velinhas!

Boa leitura e anarquizem!


Contatos

Fernanda Caroline de Melo Rodrigues: fernandaanarquista@yahoo.com.br
Thiago Lemos Silva: thiagobakunin@yahoo.com.br



Terremoto no Haiti: solidariedade ao povo haitiano




Nota introdutória dos tradutores


Não estamos ante um simples desastre natural, como os meios de comunicação nos querem fazer acreditar: estamos, na verdade, ante uma tragédia de causas sociais.
A premência da situação impôs-nos uma rápida publicação do presente artigo, que traduzimos do castelhano. Estamos, contudo cientes de que o assunto não se esgota naquilo que nele é dito. Por um lado, é revoltante o teor de muitos comentários das televisões e jornais que, aludindo à situação de extrema pobreza, que não é de agora, do tecido econômico e social haitiano, culpam os próprios haitianos pelo atraso da chegada dos socorros internacionais. Para essa gente o grande perigo seria agora “a eclosão da violência descontrolada”, como se a grande violência não fosse, precisamente, o estado de miséria e de falta de equipamentos a que esse povo tem estado sujeito, e que o terremoto veio encontrar. Um terremoto de intensidade semelhante ocorrido na Califórnia em 1994 provocou 72 mortos e 3000 feridos.
Por outro lado, o tema das catástrofes naturais é amplamente glosado - com a vantagem de que semeia um medo difuso e esotérico na opinião pública - por pessoas que, muitas delas, têm estado totalmente de acordo com outro gênero de catástrofes, não naturais mas provocadas pela própria natureza do sistema capitalista, como o desastre que atinge os povos da Palestina ou do Iraque (só neste país, desde 2003, 1.200.000 mortos civis e 5 milhões de deslocados e refugiados, em 25 milhões de habitantes) entre tantos outros exemplos possíveis.
Por fim, o grande saco roto das ONGs. Sem desprimor para (como refere este artigo) aquelas ONGs que fazem um trabalho importante de ajuda e socorro às populações sinistradas, é preciso saber-se que, segundo The Economist, essas organizações (mesmo as “boas”) gastam cerca de 80% dos seus financiamentos com o próprio pessoal que as constitui.

Passa Palavra

A tragédia mais uma vez bate às portas do Haiti. Desta vez na forma de um terrível terremoto de grau 7 [na escala Richter] que devastou o país, convertendo-o em ruínas. Ainda não se tem dados exatos do número de vítimas, mas a Cruz Vermelha fala em 3 milhões de vítimas e o número de mortos pode inclusive alcançar os 100.000 – uma cifra horrenda se considerarmos que este país conta com somente 8 milhões de habitantes. As imagens que nos chegam, de sobreviventes esmagados sob ruínas clamando por ajuda, de crianças feridas, de familiares caídos aos prantos por seus entes queridos mortos, retratam o horror desta tragédia melhor do que mil palavras.
Neste momento tão duro, nos posicionamos como sempre junto ao povo haitiano. Toda nossa solidariedade a eles, fazemos nossa sua dor, e dessa forma convocamos nossos leitores e todas as pessoas conscientes a que atendam ao chamado de ajuda lançado por diversas organizações humanitárias que estão tentando oferecer algum tipo de conforto nesta situação tão dramática.
Da mesma maneira, não podemos deixar de sentir justa indignação com a hipocrisia de uma “comunidade internacional” que volta a derramar lágrimas de crocodilo ante a “incompreensível tragédia” que sofre o povo haitiano (utilizando as palavras de Obama), mas que não reconhece a enorme responsabilidade que ela mesma tem perante esta – o impacto do terremoto pôde ser tão devastador porque estamos ante um povo previamente devastado por um século de intervenções militares, de saque descarado, de regimes autocráticos respaldados pela França e Estados Unidos e de políticas das organizações financeiras internacionais destinadas a arruinar o povo haitiano em benefício de uns poucos. Um país convertido numa enorme maquila [*], onde a maioria da população subsiste a duras penas graças à caridade. Aqui não estamos ante um simples desastre natural, como os meios de comunicação nos querem fazer acreditar: estamos, na verdade, ante uma tragédia de causas sociais. O terremoto simplesmente terminou a tarefa começada pelos Estados Unidos, França, Canadá, a MINUSTAH (as tropas de ocupação da ONU), o Fundo Monetário Internacional e organizações de desenvolvimento fraudulentas como a USAID.
A nenhum deles importou o povo haitiano enquanto ele se afogava na dívida externa contraída de maneira completamente fraudulenta pela ditadura dos Duvalier, e nunca tiveram maior “angústia” em extrair até o mais miserável centavo de um país em ruínas e com uma população faminta.
A nenhum deles importou o povo haitiano quando “tiveram” que impor programas de ajuste estrutural nos anos 90 que trouxeram resultados calamitosos para a população, como foi a redução de tarifas para a importação de alimentos como o arroz, que resultou na destruição absoluta do campesinato, que foi empurrado para as favelas de Porto Príncipe – deixando um país até então capaz de se alimentar, na fome mais brutal, como demonstraram as rebeliões de famintos em Abril de 2008;
A nenhum deles importou o povo haitiano quando durante as ditaduras de Duvalier, Namphy, Avril, Cedras e Latortue (todas as quais contaram com a bênção de Washington e Paris) foram violados, mutilados, feitos desaparecer e massacrados milhares de haitianos. Alguns, como Jean Claude Duvalier, vivem luxuosamente na França. É também o caso de Raoul Cedras, que graças ao dinheiro que recebeu como parte do acordo com os Estados Unidos que encerrou sua ditadura se converteu num respeitável homem de negócios no Panamá.
A nenhum deles importou o povo haitiano quando apareceram milhares de denúncias dos abusos sexuais cometidos pelas tropas da missão “civilizadora” da MINUSTAH, que hoje continuam ocupando, violando e assassinando impunemente no Haiti, como o demonstra o regresso ao Sri Lanka de mais de uma centena de soldados desse país em Novembro de 2007, que durante seu serviço foram culpados de várias centenas de violações e que em seu país jamais enfrentaram sequer uma encenação de justiça;
A nenhum deles importou o povo haitiano quando as maquilas [*] distorceram enormemente a economia do país, pagando a seus operários salários de miséria enquanto os abusos de toda natureza estão na ordem do dia.
A lista de razões para estar indignado ante as hipócritas declarações de pesar de um Sarkozy, de um Obama, de um Ban Ki-Moon, de um Lula, é muito extensa para continuarmos. Mas digamos simplesmente que quanto mais miserável um povo, mais fortemente ele será golpeado pelos azares da natureza. E é essa miséria que foi causada pelas forças de um modelo imposto mediante ditaduras e pressões internacionais: se três quartos da população de Porto Príncipe vivem em bairros miseráveis que cresceram de mãos dadas com a destruição da estrutura econômica do Haiti (principalmente do campo), em meio a construções precárias, podemos nos surpreender de que os mortos se contem aos milhares?
Esperamos que a solidariedade dos povos do mundo com o Haiti seja contundente. Como se tem dito muitas vezes, a solidariedade é a ternura dos povos. E esperamos que essa solidariedade, da qual milhares de vidas dependem hoje, seja transmitida e não se prenda em um emaranhado de ONGs e organizações de ajuda humanitária. Sem dúvidas, existem muitas organizações de inquestionável reputação como a Cruz Vermelha que estarão realizando valiosos trabalhos de assistência; mas junto a ela também aparecem tubarões que lucram com estas tragédias com os quais devemos ficar de olho – são as organizações populares haitianas as que devem ficar alerta para que a ajuda chegue a quem necessita dela e se distribua de maneira eficiente. Esperamos também que não chegue uma invasão de “homens brancos” por parte de certas ONGs para realizar trabalhos, como construir casas, que os próprios haitianos podem realizar perfeitamente e que, com níveis de desempenho beirando os 80%, não há razão pela qual não poderiam fazê-lo.
Para terminar, chamamos a solidariedade. Não somente ante esta tragédia que nos comove a todos os que temos o coração no peito, mas solidariedade agora e sempre, uma solidariedade que vá além desta conjuntura; uma solidariedade que escava sob as ruínas para entender que a tragédia haitiana é muito mais profunda que um terremoto de grau 7 na escala Richter; enfim, uma solidariedade que comprometa-se a repensar as relações que mantém as grandes potências com nossa região do mundo, relação da qual o Haiti não é senão o exemplo mais terrível. Uma solidariedade que nos mova a começar a questionar cada vez mais o papel que desempenham, por exemplo, as tropas da maioria dos países latino-americanos numa ocupação militar que tem o efeito tão devastador quanto o deste terremoto, mesmo que agora queiram apagar isto posando em algumas fotos repartindo bolsas de arroz com as vítimas.

José Antonio Gutiérrez


[*] Maquilas são empresas onde se montam peças ou embalagens de produtos destinados à exportação, instaladas pelas grandes transnacionais nos países periféricos para diminuição de custos em determinado estágio da produção. Essas fábricas normalmente se localizam nas chamadas “zonas de exportação” ou “zonas francas”, sob regimes de exceção econômicos em que contam com uma série de benefícios como a isenção de impostos, empregando uma mão-de-obra extremamente precarizada, com baixíssimos salários e ausência quase que total de direitos trabalhistas, constituindo um exemplo vivo da “escravidão moderna”. ( Nota dos tradutores)




Tradução do Coletivo Passa Palavra. Disponível em : http://www.farj.org/



A objeção de consciência nos escritos de Maria Lacerda de Moura

Maria Lacerda de Moura teve uma trajetória de vida singular, pois trocou experiências com organizações anticlericais, femininas/feministas, anarquistas e comunistas, o que lhe proporcionou um olhar crítico sobre a realidade vivenciada. Defendeu a educação enquanto meio de emancipação humana, lutou contra o fascismo, contra a guerra, o analfabetismo, o clericalismo, e principalmente contra a submissão da mulher ao homem e da humanidade ao capitalismo.
Em Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura, Miriam Leite registra a história dessa mulher. Nasceu em Manhuaçu/MG, em 16 de maio de 1887. Seu pai foi Modesto de Araújo Lacerda e, sua mãe, Amélia de Araújo Lacerda, ambos adeptos do anticlericalismo.
Deslocou-se com a família para Barbacena/MG em 1891, onde se tornou professora e casou-se, aos 17 anos de idade, com Carlos Ferreira de Moura. Como não podia ter filhos, adotou Jair em 1912, um sobrinho, e Carminda, uma órfã carente. Nesse período, Maria Lacerda trabalhou intensamente com a questão da educação e, em Barbacena, ajudou a fundar a Liga contra o Analfabetismo (1912). Seguiu realizando conferências e publicando os livros Em torno da Educação (1918) e Renovação (1919).
Em 1921 mudou-se para São Paulo e interou-se de questões importantes para a sua vida intelectual e militante; momento de engajamento na luta pela emancipação da mulher. Maria Lacerda de Moura e algumas militantes anarquistas - Matilde Magrassi, Isabel Cerruti, Josefina Stefani, Maria Antonia Soares, Maria Angelina Soares, Maria de Oliveira e Tibi - fundaram a Federação Internacional Feminina. A proposta da Federação era discutir questões relativas à mulher e à criança com vistas a transformar as relações estabelecidas na sociedade capitalista. As militantes questionavam a educação formal, as condições de trabalho, a subjugação da mulher aos dogmas católicos, o sistema representativo e a estrutura estatal.
Ainda em São Paulo, após contato com os movimentos femininos e operários, Maria Lacerda publicou alguns trabalhos como a revista Renascença em 1923, os livros A mulher é uma degenerada? (1924) e Religião do Amor e da Belleza (1926). Obras que tratam da emancipação feminina, maternidade consciente, educação e revelam os posicionamentos da autora sobre o papel da mulher na sociedade.
Entre 1928 e 1937, período de amadurecimento de idéias e engajamento na luta contra o fascismo, a guerra e o clericalismo, viveu em “Guararema”, na chácara D. Maria Lacerda, comunidade anarquista de cunho individualista onde cada um deveria responsabilizar-se pelo seu próprio sustento, ao contrário de outros agrupamentos coletivos como a Colônia Cecília. O grupo era formado por espanhóis, italianos e franceses objetores de consciência da Primeira Guerra mundial.
Muito produtiva, publicou no jornal O Combate a partir de 1928 e realizou conferências para a Internacional do Magistério Americano em Buenos Aires no ano de 1929. Lançou os livros Civilização - tronco de escravos (1931); Amai e ... não vos multipliqueis (1932); Serviço militar obrigatório para a mulher? - Recuso-me! Denuncio! (1933); Clero e fascismo - horda de embrutecedores (1934); Fascismo - filho dilecto da Igreja e do Capital (1934).
Durante o Estado Novo, a comunidade de Guararema foi reprimida pelo governo Getúlio Vargas, fazendo com que Maria Lacerda de Moura voltasse para Barbacena/MG em 1937, onde sofreu grande discriminação pelo seu histórico de luta. No ano seguinte, foi viver no Rio de Janeiro/RJ e trabalhou na Rádio Mairinque Veiga. Maria Lacerda dedicou-se ao estudo da astrologia nesse período, e sua última conferência foi realizada no Rio de Janeiro, em 1944. Faleceu em 1945, aos 58 anos de idade.
A noção de objetar de consciência aparece nos textos da autora como uma postura de vida a ser adotada, ou ainda, uma escolha pela liberdade. O indivíduo livre pensa autonomamente porque é capaz de mediar experiências coletivas marcadas pela opressão e pela coerção. Nesse sentido, a educação libertadora foi defendida como meio para alcançar autonomia. O indivíduo adquiriria condições de pensar livremente na medida em que tivesse referências e parâmetros de mundo que os tornasse apto a mediar idéias e práticas compartilhadas socialmente.
A defesa da liberdade de pensamento levaria à liberdade do indivíduo, ao exercício de livre consciência, à emancipação humana. A objeção de consciência se dava no momento de rebeldia do indivíduo frente aos valores impostos pelas instituições coercitivas da sociedade: Estado, família e Igreja.
A ativista difundiu a necessidade da auto-educação, assim como a construção de parâmetros de vida pautados na solidariedade e no respeito mútuo. Em seus argumentos, a mulher tinha papel fundamental na transformação humana, pois uma mãe consciente de si seria propulsora dos novos valores na sociedade. Nesse sentido, Maria Lacerda defendeu a emancipação feminina tendo como princípio o domínio do próprio corpo pela mulher, o que implicava no autoconhecimento e na recusa às imposições morais e religiosas. A maternidade consciente engendraria um conjunto de valores e comportamentos libertos das amarras sociais, pois a mulher conhecedora do próprio corpo, autônoma em seus sentimentos, estaria mais bem preparada para a escolha do pai de seu filho e saberia o momento oportuno de ser mãe. Maria Lacerda entendia que a transformação da condição feminina significava um “elo” para a emancipação humana.

Perguntam-me o que penso a respeito da emancipação feminina. Para mim, é mais um élo da emancipação humana.
A organização social de prejuízos e privilégios, baseada no capital e no salário, na exploração do homem pelo homem, civilização industrial-burgueza, nunca emancipará nem ao homem (...) á mulher.
Dentro da sociedade capitalista a mulher é duas vezes escrava: é a “protegida”, a tutelada, a “pupilla” do homem, a criatura domesticada por um “senhor” cioso, e, ao mesmo tempo, é escrava social de uma sociedade baseada no dinheiro e nos privilégios mantidos pela autoridade do Estado e pela força armada para defender o poder, a autoridade, a propriedade privada, o patriotismo monetário. (MOURA, Maria Lacerda de. A Emancipação Feminina. O Combate, São Paulo, n. 4604, p. 3, 12/01/1928).

A condição duplamente escrava da mulher só seria desmobilizada com a superação das desigualdades sociais. O combate aos privilégios de classe e à domesticação da mulher era parte de um único projeto: desconstrução de estratégias de dominação utilizadas pelas elites políticas e econômicas brasileiras.
O discurso da desigualdade entre classes está explícito no texto de Maria Lacerda que entendia a possibilidade de mudança através do esforço individual e da auto-educação, por meio do objetar de consciência. Tendo em vista sua postura individualista, a autora acena para a necessidade da autocrítica das mulheres no sentido de adotarem um posicionamento autônomo perante as pressões sociais. Propunha, então, que as mulheres desprezassem as maledicências e reivindicassem sua liberdade. Uma vez que a sociedade era fruto de relações desiguais, a única forma de sair desse círculo vicioso seria buscar a independência econômica e a liberdade sexual.
Contrariando o direcionamento dado pelo movimento feminista sufragista, a autora travou um embate com as feministas, principalmente no que diz respeito à luta pelo direito do voto. Maria Lacerda foi enfática ao afirmar a necessidade do domínio sobre o próprio corpo ao invés de canalizar energias para luta político-institucional, uma vez que entrar nas estruturas do Estado significava compactuar com um sistema que gerava a pobreza e a ignorância.

Só podemos aspirar ao progresso moral de cada individuo, considerando como unidade.
Nesse caso, a mulher tem de proceder como os individualistas livres, se tem caracter, dignidade, se reivindica o direito de viver, o direito de criatura, de ser humano.
A mulher terá de deixar as suas tolas, infantis reivindicações civis e políticas – para reivindicar a liberdade sexual, para ser dona do seu próprio corpo.
É a única emancipação possível dentro da civilização – mercado humano, tronco de escravos.
Emancipar-se economicamente ou ganhar a vida pelo seu trabalho e emancipar-se pela liberdade sexual. (MOURA, Maria Lacerda de. A emancipação feminina. O Combate, São Paulo, n. 4604, p. 3, 12/01/1928).

Um dos livros escritos na comunidade de Guararema (MOURA, Maria Lacerda de. Ferrer o Clero Romano e a Educação Laica. São Paulo, Editorial Paulista, 1934), propõe uma série de reflexões da autora sobre Estado, fascismo e a não-violência. “Para educar, é preciso ter-se educado a si proprio, na tortura gloriosa do dominio das paixões e do espirito de autoridade” (p.88).
O ser humano livre é aquele que se coloca acima dos dogmas difundidos pela família, Estado e religião. A negação das instituições e valores domesticadores consistia no que a autora denominou objetar de consciência. Ser objetor de consciência significa posicionar-se contrário ao que se convencionou considerar inquestionável, a começar pelos sistemas políticos e religiosos que permanecem vigentes.
Em Guerra à guerra (MOURA, Maria Lacerda de. Guerra á guerra. O Combate, São Paulo, n. 4560, p. 3, 19/11/1927), Maria Lacerda falou sobre a atitude de um francês que não se alistou ao serviço militar obrigatório e acabou sendo preso em conseqüência de sua insubmissão. O artigo foi publicado em 1927 e Chevé argumentava que havia presenciado os horrores da 1º Guerra Mundial quando criança, se recusando a alistar-se nas fileiras da morte. A atitude desse homem teve grandes repercussões no mundo, tornando-se notícia na imprensa livre.
A postura de Georges Chevé representava a possibilidade de ser livre e estar acima das pressões sociais. O francês optou pela liberdade, mesmo que seu corpo fosse encerrado numa cela. Do que vale um corpo livre quando a mente está presa? Manter o corpo livre significava, naquelas circunstâncias, colocá-lo a serviço da morte. Ser livre era estar preso. O indivíduo recusou-se à humilhação. Chevé não se permitiu ser domesticado, segundo Maria Lacerda.
O sentimento de humilhação é forjado numa relação desigual na qual uma das partes (individual ou coletiva) é a agressora e a outra, vítima de agressão (ANSART, 2005). Uma situação de humilhação gera dor, sofrimento, sensação de inferioridade e ofensa. Ao sentir-se ofendido o indivíduo é atingido em sua honra, pois honrado é aquele que não se subjuga. Várias são as experiências humanas de humilhação e a recusa a essas situações consiste na afirmação de si.
A recusa a pactuar com aquilo que é baixo, a se inclinar diante de uma situação humilhante, é um dos três sentidos da honra como nos mostra Febvre. A recusa implica em preservar a dignidade na desventura, em manter-se fiel àquilo que se é, à sua identidade pessoal. A honra é também uma sensibilidade muito viva “às diminuições de que nossa pessoa possa ser vítima, um grande sentimento de beleza da própria vida, que implica obrigação de tudo fazer para que ela não seja pisoteada, de apagar qualquer humilhação.” E no seu terceiro sentido, a honra é uma força de ação, que engaja, sem hesitação, o homem na ação. É uma espécie de escudo que barra as impurezas que são colocadas diante de nós. (LOPREATO, 2005, p.249).

Georges Chevé afirma a si mesmo quando se nega a uma situação de humilhação, quando não se submete ao serviço militar, à violência e ao poderio do Estado. A atitude de Chevé deveria ser adotada por todos, segundo Maria Lacerda, com vistas à construção de uma nova sociedade. Num momento em que o fascismo se impunha na Itália e influenciava o Brasil com projetos homogeneizantes, a recusa às imposições do Estado era uma reação à domesticação.
Serviço militar obrigatório para mulher? Recuso-me! Denuncio! também foi produzido quando da luta de Maria Lacerda contra o fascismo. É resultado de uma conferência realizada em 1932 a pedido da Liga Anticlerical do Rio de Janeiro. O livro foi publicado em 1933, com Getúlio Vargas no poder. A autora já havia adotado uma postura política radical e realizava ferrenhas críticas a um Estado autoritário e dilacerante que dissolvia o indivíduo, matando o seu poder de criação e de intervenção.
A preocupação da autora era denunciar os mecanismos de poder de uma conjuntura política delicada no Brasil e no mundo, tendo em vista que o fascismo influenciava nosso país na década de 1930. O Estado italiano investia na militarização da população, incitava a violência e adotava uma educação religiosa. O nacionalismo e o patriotismo eram cultivados pela Igreja e pelo Estado.
O livro de Maria Lacerda sobre o serviço militar trata dos horrores causados por guerras. Um projeto de lei da época visava tornar obrigatório o serviço militar para ambos os sexos no Brasil. A autora realizou reflexões de negação à proposta apresentada e alistou-se à Internacional dos Resistentes a Guerra, associação de pensadores contrários à guerra e à violência.
A necessidade de se implementar o serviço militar obrigatório já era defendida por Olavo Bilac em 1915 (LUCA 1999). Os homens convocados para servirem à pátria seriam os responsáveis pela defesa do território nacional se necessário, e sacrificariam suas vidas em nome das fronteiras brasileiras. No entanto, este anteprojeto de Constituição trazia uma novidade: a obrigatoriedade do serviço às mulheres.

Pode-se afirmar, desde já, que o serviço militar será obrigatório para todo brasileiro que completar 21 anos”. Quanto a essa parte, na futura Constituição haverá um pormenor interessante: “As mulheres também serão obrigadas ao alistamento militar para que possam ficar integralizadas na comunhão político-social. Uma vez chamadas, serão distribuídas pelos diversos serviços auxiliares, como a Cruz Vermelha, Administração, Arsenais, etc. (MOURA, Maria Lacerda de. Serviço militar obrigatório para mulher? Recuso-me! Denuncio! Guarujá/SP: Editora Opúsculo Libertário, 3ª reedição, p.:19, 1999.)

Para a autora esse projeto de lei explicitava o abuso de poder que o Estado imprimia sobre a população. Segundo Maria Lacerda, o Estado é responsável pela morte do indivíduo. Este é absorvido por uma instituição autoritária que se coloca como representante do todo, mas defende os interesses de uma elite. Os servidores da pátria são, portanto, defensores de uma classe privilegiada entregue ao imperialismo.
A relação do governo de Vargas com o fascismo na Itália, segundo Maria Lacerda, estava na subjugação do indivíduo pelo Estado, na perda da liberdade individual. A disciplinarização dos indivíduos e dos movimentos populares se dava pelo conjunto de leis elaboradas pelo Estado, burocracia criada para servir de mediação entre patrão e empregados. O Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, criado em 26 de novembro 1930 (decreto nº 19.433), representava o controle sobre os trabalhadores que se encontravam à mercê das regras ditadas pelo mercado.
Maria Lacerda apontava o caráter subserviente da elite brasileira frente aos interesses estrangeiros, o que tornava questionável a postura nacionalista tão propagada pelo governo. A autora buscava alertar o leitor para o fato do discurso em favor da pátria representar um meio de manter a população envolvida pela idéia de civismo, enquanto os grupos mais favorecidos abriam espaço à exploração estrangeira.
O Brasil, segundo Lacerda de Moura, esteve à mercê do poder colonizador e imperialista, herdando uma cultura fortemente autoritária perceptível em diversos âmbitos sociais. Este país que foi construído de forma truculenta, a partir de um processo de exploração e desrespeito aos povos originários, havia aprendido a conviver com o chicote do feitor.
Maria Lacerda afirmava: “Há só um caso em que me posso tornar patriota, nacionalista: é quando os interesses humanos se confundem com os interesses nacionais” (MOURA, Maria Lacerda de. Clero e Estado. RJ: Editora Liga Anti-Clerical, 1931, p.4). Os interesses nacionais deveriam, portanto, acompanhar os interesses dos indivíduos, fortalecer a dignidade humana, estabelecer uma convivência pacífica e igualitária onde reinasse a liberdade de ação e de pensamento.
A proposta de serviço militar obrigatório para homens e mulheres sustentava o projeto bélico do Estado nacionalista, de acordo com a autora. Um Estado forte o era pelo seu potencial de destruição; nesse sentido, as medidas governamentais objetivavam fortalecer o exército.
Entendidos como mecanismos de controle social, família, Estado e religião aparecem no discurso lacerdiano como causadores de ignorância e domesticação. A palavra domesticar é explorada em vários textos, revelando um estilo incisivo e direto de escrita. Maria Lacerda era avessa às instituições controladoras – posicionamento que demonstra sua opção pela anarquia: a busca da liberdade de pensamento e de ação. Domesticar o ser humano é anulá-lo obrigando-o a se curvar perante um mundo conflituoso e marcadamente injusto. A necessidade de se opor à domesticação era tarefa difícil, desempenhada por poucos.
Ser um objetor de consciência significava buscar novas formas de sociabilidade que tivessem como único interesse o amor entre os indivíduos. Cultivar amor à pátria e morrer por ela seria uma forma de negar-se como ser humano, negar sua consciência em nome de um Estado que mantém privilégios de classe. Cultivar amor à família significava manter-se preso a uma estrutura de poder na qual um sobrenome determina a origem e a formação do indivíduo. Cultivar o amor à Igreja era, sobretudo, manter-se ligado a uma instituição que historicamente esteve ao lado do Estado e do Capital, difundindo valores repressores e mantenedores do status quo.
Muitos de seus textos apontam para a necessidade de se entender a vida para além da razão. A religião, segundo a autora, não respondia a esses anseios, ao contrário, representava mais uma forma de prisão num mundo marcado pela violência, corrupção, ódio e descaso com o próximo. Maria Lacerda reivindica o direito de pensar no transcendental sem que isso fosse confundido com superstição ou religião, como podemos perceber no texto a seguir:

A razão não tem o direito de sufocar o sonho.
Reduzir a inquietude a preconceito religioso é um crime e um preconceito mais vulgar. Metafisica não é religião.
A religião é muleta para os fracos e ignorantes. Não basta, não satisfaz à curiosidade dos que já escalaram mais alto.
Tambem a ciencia oficial nada póde explicar das cousas transcendentais. Paira à superficie. Cultiva o preconceito do saber absoluto. E não responde às nossas interrogações, à inquietação do nosso espirito insatisfeito. (MOURA, Maria Lacerda de. Ferrer, o Clero Romano e a Educação Laica. S.P, Editorial Paulista,1934, p.58.

O discurso acima revela um aspecto – talvez – comum às pessoas que se dedicam às grandes causas políticas. Ao apresentar sua crítica frente à organização social vigente o faz num tom implacável, visceral. Sua escrita nos dá pistas de como manteve suas convicções a despeito das críticas e repressões sofridas – a autora fala dos sonhos. O direito de sonhar e investir num futuro diferente, numa nova sociedade.
Ao reivindicar a possibilidade de pensar o mundo para além da superstição e da razão e, ao reivindicar o direito de sonhar, Maria Lacerda nos coloca questões importantes que dizem respeito aos projetos individuais. As muletas religiosas, as leis humanas – representadas pelo Estado – e a supervalorização da razão contribuem para a inércia individual e supressão dos sonhos. A inquietude humana frente à vida e todos os “fantasmas” que circundam o mistério do viver fazem parte da essência humana. A ativista chamava atenção dos leitores para essa questão, já que acreditava na possibilidade dos seres humanos criarem outras formas de sociabilidade baseadas no sentimento de amor e solidariedade. O direito de sonhar leva à ação – daí o conteúdo revolucionário dos escritos lacerdianos.
Torna-se clara a associação entre a noção de objetar de consciência e liberdade se entendermos a objeção como negação ao instituído. O indivíduo que nega as leis impostas pelo Estado, os valores religiosos e da família burguesa, e assume posturas autônomas frente às questões que o interpelam, é um indivíduo livre. O direito de sonhar com o novo só é dado àquele que se opõe às convenções. Extinguir o governo, a propriedade privada e a desigualdade entre classes para conquistar a liberdade.
Segundo Kropotkin, o” homem para ser livre precisa se libertar do capitalismo e do Estado que o sustenta” (LOPREATO 2003, p 572). O anarquista defensor da liberdade, da solidariedade e do indivíduo argumentava sobre os malefícios causados pela coerção do Estado e apostava na destruição dessa instituição, bem como na reinstauração de valores pautados no princípio de ajuda mútua. A negação dos mecanismos de controle sobre o indivíduo e o exercício de objeção de consciência levaria à liberdade.
Maria Lacerda de Moura apostou em sua ação discursiva e acreditou na possibilidade de sonhar com o “novo”. Passou por vários processos em seu amadurecimento intelectual até chegar à noção de objeção de consciência. A defesa da ativista era um alerta quanto às posturas políticas adotadas pela maioria da população. Ao leitor do século XXI cabe refletir sobre as críticas dos libertários acerca da família, Estado e religião. Em que medida os debates promovidos pelos anarquistas nos colocam questões do presente?
A defesa da objeção de consciência incomoda a todos nós, pois nos faz pensar nos posicionamentos e escolhas tomados ao longo de nossas vidas. Na maioria das vezes, quando nos deparamos com algumas encruzilhadas, optamos por atender às expectativas familiares, profissionais ou religiosas, negando nossos desejos pessoais. O alerta da anarquista se direciona às pessoas que se deixam “engolir” por sentimentos ditos “coletivos” quando, na verdade, acabam transformando-se em máquinas e obedecendo a comandos. Essa reflexão, a meu ver, é primordial aos indivíduos de ontem e de hoje.

Jussara Valéria de Miranda é mestra em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU); professora da rede estadual de ensino em Limeira, SP e autora da dissertação “Recuso-me: Ditos e Escritos de Maria Lacerda de Moura”, defendida no ano de 2006.


Referências

ANSART, Pierre. As humilhações políticas. In: MARSON, Izabel e NAXARA Márcia (org.). Sobre a humilhação. Sentimentos, gestos, palavras. Uberlândia EDUFU, 2005

LEITE, Míriam Lifchitz Moreira. Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. SP: Ática, 1984

LOPREATO, Christina da Silva Roquette. Sobre o pensamento libertário de Kropotkin: liberdade, indivíduo, solidariedade. História & Perspectivas, Uberlândia, v. 27 e 28, jul./dez. 2002/ jan./jun. 2003, p 572

LOPREATO, Christina da Silva Roquette. O respeito a si mesmo: Humilhação e Insubmissão. In: MARSON, Izabel e NAXARA Márcia (org.). Sobre a humilhação. Sentimentos, gestos, palavras. Uberlândia EDUFU, 2005, p.24

LUCA, Tânia Regina de. Revista do Brasil: redespertar da consciência nacional. A revista do Brasil: um diagnóstico para a (n)ação. São Paulo: Editora da UNESP, 1999, pp.: 35-84

MOURA, Maria Lacerda de. Guerra á guerra. O Combate, São Paulo, n. 4560, p. 3, 19/11/1927

MOURA, Maria Lacerda de. A Emancipação Feminina. O Combate, São Paulo, n. 4604, p. 3, 12/01/1928

MOURA, Maria Lacerda de. Ferrer o Clero Romano e a Educação Laica. São Paulo, Editorial Paulista, 1934

MOURA, Maria Lacerda de. Serviço militar obrigatório para mulher? Recuso-me! Denuncio! Guarujá/SP: Editora Opúsculo Libertário, 3ª reedição, p. 19, 1999






Boris Casoy, os garis e o “politicamente correto”

O âncora do Jornal da Band ofendeu os garis, e extensivamente, aos profissionais que desempenham tarefas essenciais à sociedade, mas geralmente desvalorizados. No fundo, faz-se de conta que não existem, são trabalhadores “invisíveis”. Eles estão diante de nós, mas são desumanizados e reduzidos à função que praticam. Quando lembrados pela mídia sedenta de ibope, o ato revela-se pura demagogia. Cai a máscara!
Palavras pronunciadas mecânica e jornalisticamente; uma face que se assemelha a um robô de um desse filmes trash – sem trocadilho – de ficção científica. Os lábios que se mexem, porém, são de carne e sangue; é uma boca humana. É possível acreditar na sinceridade de quem fala? A fala espontânea que humilha os garis, essa sim soa sincera. Ela expressa algo próprio do humano, dos que se consideram superiores. O discurso pelo perdão, também é humano, mas soa falso. São palavras literalmente lançadas ao ar. Hipocrisia!
Mas, por que desculpar-se?! Exigências patronais para manter a audiência? Obediência ao politicamente correto? O pedido de desculpas não muda absolutamente nada. Pelo contrário, revela-se mera formalidade diante da repercussão negativa.
Claro, a gafe deste senhor merece críticas. E muitas foram feitas! Não obstante, também cabe um agradecimento. Antes que me compreendam mal, que os “diretores da consciência”, também conhecidos modernamente como “patrulha ideológica”, me critiquem, devo esclarecer o sentido do meu “elogio”. É simples: ao manifestar seu pensamento e, por uma falha técnica suas palavras terem se tornado públicas, o renomado jornalista expôs cruamente o que muitos pensam neste país, mas não têm a coragem de assumir. Ele manifestou o pensamento elitista, conservador e socialmente preconceituoso: um preconceito de classe contra os pobres; contra os que moram em favelas; contra os que não tiveram a oportunidade de estudar em universidades; contra os profissionais socialmente não reconhecidos e desqualificados. É uma herança da nossa formação colonial escravagista que permeia boa parte dos grupos sociais esclarecidos, diplomados, titulados e economicamente favorecidos.
A sinceridade deste senhor contribui para romper o véu de hipocrisia presente nas relações sociais no cotidiano e em espaços considerados “nobres”. É ilusório acreditar que muitos não se sentiram representados em suas palavras – e, provavelmente, ele até os decepcionou ao pedir “desculpas”. Sua fala expressa o pensamento e sentimento de muitos que andam por aí encobertos pela máscara dos “civilizados”; dos que, em público, se pautam pelo “politicamente correto”. Boris Casoy nos prestou um serviço ao desvelar a realidade que os hipócritas não ousam reconhecer.
A onda do “politicamente correto” também oculta a realidade social em torno de um discurso que se revela falso à primeira prova prática. O discurso “politicamente correto” paga um tributo à tirania da opinião da maioria, estabelece falsas unanimidades, além de, em alguns casos, beirar o ridículo. Ora, a exigência social, ética e humanista de respeito às pessoas que cuidam do lixo que a sociedade produz – e quanto maior o poder econômico, mais lixo – , e às profissões como a dos lixeiros, não anula o preconceito social e de classe. O “politicamente correto”, muitas vezes, encobre práticas e comportamentos inaceitáveis. É precisamente por isto que é melhor que venham à tona, que se manifestem. Assim, passamos a saber quem é quem. O pacto dos hipócritas pode até estabelecer uma certa harmonia social, mas esta se revelará falsa. A gafe do senhor Boris Casoy comprova-o.

Antonio Ozaí da Silva

Disponível em: http://antoniozai.wordpress.com/2010/01/09/boris-casoy-os-garis-e-o-“politicamente-correto”




O caçador do tesouro perdido da tradição revolucionária: Rudolf Rocker, os conselhos operários e a Revolução Russa


Rocker, Rudolf. Os sovietes traídos pelos bolcheviques. São Paulo: Hedra, 2007

Os conselhos são órgãos revolucionários que surgem espontaneamente entre as classes trabalhadoras em períodos onde a ruptura com a sociedade capitalista e a construção da sociedade socialista se apresentam como possibilidade real para os proletários e camponeses presentes em tais momentos de convulsão social. Os conselhos tem por objetivo superar a estrutura econômica e política da sociedade burguesa, que se baseia na propriedade privada e na democracia parlamentar.
Os conselhos visam, desse modo, erigir um tipo de administração onde, uma vez socializados os meios de produção, os trabalhadores se organizam de baixo para cima a partir de pequenas unidades, tais como as fábricas, escolas, comunidades etc.. para gerir diretamente os assuntos concernentes a sua existência coletiva. Depois de interligadas, tais unidades substituem o Estado liberal de direito na tarefa de articular as diferentes partes que compõem a totalidade do corpus social.
Assim sendo, podemos perceber que os conselhos operários podem assumir conteúdos distintos, que são, por sua vez, dependentes do contexto histórico em que estes emergem e se consolidam. Foi desse modo que procedeu com a Comuna de Paris em 1871, os sovietes na Revolução Russa em 1905 e após, em 1917, os rattes na Revolução Alemã em 1919, as coletividades na Guerra Civil Espanhola em 1936, os caracoles zapatistas no México em 1993 e, mais recentemente, as asambleas na Argentina em 2001.
Usualmente, o conselhismo é tomado como uma expressão filosófica típica do marxismo, mais especificamente do marxismo heterodoxo. Isso fica bastante evidente quando nos deparamos com o trabalho de autores do quilate de Rosa Luxemburg, Anton Panekoek, Paul Mattik, Hermam Gorter entre outros. Não obstante, a reivindicação dessa herança não é feita apenas pelos marxistas. Como iremos ver mais adiante, outras correntes do pensamento socialista também exigem o seu lugar junto aos demais executantes testamentários do legado deixado por aquilo que seria, segundo a feliz expressão de Hannah Arendt, o “tesouro perdido da tradição revolucionária”.
Dentre essas outras correntes do pensamento socialista estão, naturalmente, os anarquistas, cujas reflexões acerca dos conselhos são anteriores e, em certos aspectos, mais profundas do aquelas realizadas pelos seguidores de Marx. Nesse sentido, não foi por acaso que o anarquista alemão Rudolf Rocker se esforçou, a maneira de um caçador, para descobrir e decifrar a obscura, porém viva, presença desse tesouro perdido no interior de uma tradição revolucionária que anunciava o fim da desgraça representada pela exploração econômica e pela dominação política. Esforço este, em grande parte, organizado e sistematizado no livro “Os Sovietes traídos pelos Bolcheviques”, obra em que o autor levanta e discute questões significativas para um correto entendimento acerca da teoria e prática conselhista.
Nessa direção, a presente resenha do livro de Rocker tem o objetivo de, por um lado, refletir sobre a origem teórica dos conselhos, demonstrando a sua estreita proximidade com a tendência anarquista que se desenvolve no seio da Primeira Internacional e, por outro, analisar o desenvolvimento prático dos conselhos durante a Revolução Russa de 1917, sublinhando a sua eventual incompatibilidade com ditadura do proletariado implantada pelo partido bolchevique após a tomada do poder por Lênin e seus seguidores.
Ao traçar a genealogia da idéia de conselhos, Rocker remonta até a longínqua década de 60 do século XIX, período onde aparece, como já sabemos, a Associação Internacional dos Trabalhadores. Para o nosso autor, foi com o surgimento e transformação da Internacional que o movimento operário europeu começou a se preparar para “despojar os últimos restos do radicalismo burguês e voar com as suas próprias asas” (p.78).
Portanto, na medida em que a Internacional tomava consciência de si mesma, a idéia dos conselhos operários ia ganhando contornos cada vez mais nítidos entre seus aderentes. De congresso em congresso, essa idéia aparecia aqui e acolá. Mas, sem sombra de dúvidas, ela só foi precisada e desenvolvida coma clareza que lhe era necessária no Congresso da Basiléia, no ano de 1869. De acordo com Rocker, foi no congresso em questão que o anarquista belga Eugins Hins teria discutido pela primeira vez as tarefas presentes e futuras das organizações sindicais no que concerne a realização do socialismo.
Em sua moção, Hins sustentava que da organização surgida para a defesa do trabalho contra o capital, nascerá “a administração política das comunas”, onde “os conselhos das organizações de ofícios e indústrias substituirão o governo atual e a representação do trabalho substituirá de uma vez por todas os velhos sistemas políticos do passado”. (p.80)
Segundo Rocker, tal premissa teria surgido da compreensão de que existe uma íntima relação entre os fatores econômicos e políticos que compõem a vida social. Como acreditava que, com a vinda do socialismo, a era da exploração do homem pelo homem teria findado, a dominação do homem pelo homem também deveria sê-lo.
Logo, a materialização da sociedade socialista demandaria não apenas de uma nova forma de expressão econômica, mas, também e, sobretudo, de uma nova forma de expressão política, pois, ela só seria realizável no âmbito desta última. “Essa nova forma”, pensava ele, “poderia ser encontrada no sistema de conselhos”(p.80).
Como estavam cônscios de que a sua tarefa era se apoderar dos meios de produção econômica, acreditavam não ter necessidade de organizar um partido político e tomar o poder do Estado, mesmo que este último tivesse o nome de proletário. Para Rocker, o adágio sainti-simoniano de que o governo dos homens deveria dar lugar à administração das coisas era a pedra de toque identitária da filosofia dos internacionalistas.
Todavia, apenas as seções espanhola, italiana e francesa, que se encontravam sob a influência das idéias de Bakunin é que aderiram e, portanto, defenderam a proposta conselhista. Em virtude disso, tiveram, irrevogavelmente, de se bater contra Marx, Engels e os demais representantes do Conselho Geral, que ficava situado em Londres. Ao contrário dos anarquistas, os marxistas acreditavam que era a ditadura do proletariado, sob a direção do partido de vanguarda, a quem caberia a incumbência de reconstituir a sociedade num sentido socialista.
Segundo o anarquista alemão, Marx teria herdado essa teoria dos jacobinos e outros intelectuais vinculados à burguesia radical. A título de exemplo, Rocker cita o livro “O Manifesto Comunista” escrito por Marx, em pareceria com Engels, onde a idéia de ditadura do proletariado parece como sinônimo da tomada do poder do Estado por um partido político, que existiria até que os conflitos entre as classes desaparecessem completamente.
Como o despotismo do método corresponde ao despotismo da ação, não demorou muito para Marx conseguisse expulsar os anarquistas da Internacional. Foi justamente o que aconteceu no Congresso de Haia em 1872, onde o Marx conseguiu, através da manipulação dos votos, obter a maioria necessária para expulsar Bakunin, Guilhaume e outros anarquistas, neutralizando desse modo a influência dos mesmos sobre o movimento operário europeu. Após o fim da Internacional, que depois de transferida para Nova York perdeu qualquer relevância política, e a destruição da Comuna de Paris, fatos ocorridos no mesmo ano, o conselhismo foi completamente olvidado.
Somente em algumas décadas posteriores, com o surgimento do sindicalismo revolucionário francês, que, aliás, estava profundamente impregnado pelo anarquismo, que tal situação haveria de se alterar. Como indica Rocker, a atividade dos anarquistas Fernand Pelloutier, Emile Pouget e George Yvetot junto ao movimento operário no período de 1900 a 1907 assumiu uma importância fulcral para a retomada e reatualização da teoria e prática conselhista.
Resguardadas as devidas diferenças históricas, o nosso autor aduz que foi essa mesma idéia que serviu de inspiração para os operários e camponeses russos nos primórdios da Revolução de 1917, até que ela fosse totalmente subordinada e substituída pela ditadura do proletariado.
Refletindo sobre as causas que levaram a experiência socialista na Rússia ao seu malogro, Rocker sustenta que para além do pouco desenvolvimento industrial, isolamento frente às outras nações capitalistas e, somando-se a isso, avanço da reação burguesa, existe um outro fator que, a despeito da sua profunda importância, fora mencionado apenas superficialmente nas análises até então promovidas: a união entre os conselhos e a ditadura.
De acordo com o anarquista, esse casamento, já destinado ao divórcio, não podia “engendrar outra coisa senão a desesperadora monstruosidade que é a comissariocracia bolchevique”. Para Rocker não podia ser de outro modo, pois o sistema dos conselhos não suporta qualquer ditadura. “Nele se encarnam a vontade da base, a energia criadora dum povo, enquanto na ditadura reinam a coação de cima e a cega submissão aos esquemas de espírito de um diktat” (p.77).
Consistente com o que havia colocado Kropotkin em sua “Carta aos Trabalhadores do Ocidente”, Rocker acredita que na Rússia os socialistas estavam “aprendendo como não se deve implantar o comunismo”. Assim como o mestre, o pupilo inferia que a teoria de Lênin a respeito da necessidade de um regime ditatorial no período de transição até o desaparecimento da sociedade de classes lhe parecia assaz falsa. Pois, embora a ditadura pudesse destruir uma sociedade , jamais poderia ser útil para criar uma, algo que só os conselhos, com seu aspecto construtivo, poderiam fazer.
E antevendo as críticas que poderia receber, Rocker afirma que a hipótese segundo a qual a ditadura do proletariado constitui um caso a parte, por se tratar da ditadura de uma classe, não merece nem sequer refutação, pois não passa de um sofisma para enganar tolos. “É inconcebível”, afirmava ele, “falar em ditadura de uma classe, visto que se trata sempre, no final das contas, de um certo partido, que se pretende falar em nome da classe”(p.90).
Para além da substituição dos conselhos livres por órgãos estatais, a ditadura bolchevique deu início a uma processo de perseguição a todos os revolucionários não comunistas, que ironicamente eram, em sua quase totalidade, defensores do sistema de conselhos. Se antes, estes eram a glória da revolução, agora não passavam de traidores a serviço do capitalismo internacional.
“Dessa suficiência autoritária de um pequeno grupo que busca encobrir sua sede de poder” (p.46) resultou a destruição da comuna autogestionária de Makhno na Ucrânia em 1918; a repressão aos marinheiros de Kronsdat em 1921 e o encarceramento e assassínio dos anarquistas, sindicalistas, socialistas revolucionários ou de qualquer outra corrente da esquerda que ousasse reivindicar o fim da comissariocracia do partido e uma maior atuação dos conselhos na construção do socialismo.
Após o findar do período do “Comunismo de Guerra”, os conselhos já se encontravam totalmente destituídos da sua autonomia e completamente privados dos seus autênticos defensores. Segundo Rocker, esse foi o primeiro passo para que a guinada da política de Lênin rumo a direita se realizasse por inteiro. “Pois, com a implementação da Nova Economia Política surgiu à crença de que seria preciso “fazer com que o capitalismo fosse dirigido nas águas do capitalismo de Estado”, já que “o socialismo só poderia se desenvolver a partir deste” (p.454).
Comparando a Revolução Francesa com a Revolução Russa, Rocker lembra com propriedade que a política de Robespierre conduziu a França a ditadura militar de Luis Napoleão Bonaparte. “Mas” questiona Rocker “ a que abismo a política de Lênin e seus camaradas conduzirá a Rússia?” (p.39).
Embora o nosso autor não pudesse ainda responder essa pergunta, haja vista que o seu livro havia sido escrito no calor no dos acontecimentos, ele pressentia com uma intuição quase certeira que esse abismo não poderia ser outro senão o totalitarismo estalinista.
Para concluir essa resenha gostaria de me ater a dois aspectos do livro de Rocker: o historiográfico e o político.
O primeiro está relacionado ao fato que graças a livros como o de Rocker, a historiografia pôde ir alé m da interpretação dada pelos partidos políticos que se pretendiam os donos da verdade científica e, com isso, mostrar o outro lado da Revolução Russa: a atuação dos conselhos operários. O segundo se vincula a constação de que assim como aconteceu na Revolução Russa, hoje em dia a esperança de mudar o mundo não pode vir de cima, por meio do Estado, até mesmo por que esse se mostra incapaz de fazê-lo. Essa esperança deve vir de baixo, através das próprias organizações que os movimentos sociais contemporâneos têm demonstrado a capacidade de criar.
Sob este duplo aspecto, o livro “Os Sovietes Traídos pelos Bolcheviques” permanece ainda extremamente atual.

Thiago Lemos Silva


Notícias


Falecimento de Howard Zinn

É com pesar que informamos aos leitores deste blogue do falecimento de Howard Zinn, historiador e ativista norte-americano, aos 87 anos de idade. Ele sofreu um infarto e deixa dois filhos e cinco netos.
Zinn – responsável por “uma contribuição incrível para a cultura intelectual e moral americana” nas palavras de Noam Chomsky – é o autor de diversos livros influentes, dentre os quais destacamos A People’s History of the United States, com o qual deu origem a uma guinada pela história radical nos Estados Unidos. Por história radical entenda-se uma perspectiva engajada, longe de “neutralidades” tão postuladas por certas correntes, buscando iluminar as lutas sociais em seus contextos, numa participação verdadeiramente ativa.
Aqui no Brasil, nós da L-Dopa tivemos a oportunidade de editar sua autobiografia, Você não pode ser neutro num trem em movimento (2005). Ficamos igualmente felizes com as respostas de inúmeras pessoas que encontraram no livro mais do que um simples estímulo intelectual, mas uma experiência de integridade de um historiador engajado e um homem devotado à transformação da realidade social. Irremediavelmente otimista, como ele mesmo se descrevia, esperamos guardar de Howard Zinn a paciência e a tenacidade que o relato de sua vida nos revela possível. Como indivíduos e como editora expressamos nosso débito a Zinn e estendemos nossos pêsames a todos os familiares, amigos e admiradores do autor.

“O que nós enfatizamos nesta história complexa irá determinar nossas vidas. Se nós só vemos o pior, isto destrói nossa capacidade para fazer algo. Se nós nos lembrarmos das épocas e lugares – e existem tantos – onde as pessoas agiram de maneira magnífica, isto nos dá energia para agir, e ao menos a possibilidade de mandar o mundo numa direção diferente. E se agimos, de qualquer maneira – ainda que pequena -, não precisamos esperar por algum grande futuro utópico. O futuro é uma infinita sucessão de presentes, e viver agora como nós acreditamos que seres humanos devem viver, desafiando tudo que de mal existe ao nosso redor, é em si uma maravilhosa vitória.” (Howard Zinn – Você não pode ser neutro num trem em movimento)

Fonte: http://ldopaeditora.wordpress.com/




“Mais que palavras” e o “Inimigo do Rei: imprimindo utopias anarquistas”


Recentemente, os compas Rafael Costa e Everaldo Tavares nos agraciaram com dois belíssimos presentes: os livros “Mais que palavras” e o “Inimigo do Rei: imprimindo utopias anarquistas”. O primeiro, cuja autoria é de Rafael Costa, é uma excelente História em Quadrinhos baseada em momentos da vida do anarquista expropriador argentino, Miguel Arcángel Roscigna. Já o segundo, organizado por Carlos Baqueiro e Eliene Nunes, trata do famoso jornal anarquista “O Inimigo do Rei” que circulou pelo Brasil nas décadas de 1970 1980. Além de um breve histórico, o livro traz também artigos que já foram publicados no jornal. Os respectivos livros foram publicados pela editora libertária “Achiamé” e podem ser encontrados no seguinte site: http://www.achiame.com/



100 anos da CNT: Regravações dos Clássicos Hinos Revolucionários

Em homenagem aos 100 anos da CNT, foram regravados dois hinos clássicos revolucionários "Hijos del Pueblo" e "A las Barricadas".
As regravações foram feitas no Conservatório Juan Crisostomo de Arriaga no dia 14 de novembro de 2009 em homenagem ao 100 anos da CNT, em Bilbao, Espanha.
Os hinos podem ser conferidos na nossa seção Downloads ou nos links Hijos del Pueblo e A las Barricadas.

Fonte: http://www.farj.org/


O LUGAR ONDE EU MORO


O lugar onde eu moro professor do estado não é valorizado.
Do lugar de onde eu venho tenho curso superior específico para lecionar e meu piso salarial é de R$ 545,00.
No lugar de onde eu venho estou há mais de 10 anos sem ter reposição salarial.
È neste mesmo lugar que o Governo de Minas diz não ter dinheiro em caixa para melhorar o salário dos professores, mas gasta dinheiro o tempo todo com propagandas fictícias na TV sobre educação em horário nobre.
No lugar onde eu vivo ninguém nunca viu nenhum professor estadual na TV sorrindo e falando bem da situação a que passam;
Do lugar de onde eu venho os professores estão humilhados e passando dificuldades financeiras;
E é neste mesmo lugar que toda semana tem relatos de agressão a professores dentro da escola.
Pedimos a todos que repassem essa mensagem precisamos da internet pois não temos voz na mídia.
Professor não se cale mais a internet é uma rede mundial de computadores faça também o seu protesto.

Mande sua manifestação de apoio para: profdeminasnamiseria@yahoo.com.br

Fonte: Ana Luiza Dornelas Mota
E-mail: analuizadm@yahoo.com.br

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